Onde se revela a verdadeira identidade
do homem que se passa por José Dirceu
Um dia, Carlos Henrique Gouveia de Melo sonhou ser José Dirceu e...
Melhor começar do começo. Surgiram razões, nas últimas semanas, para estranhar a falta de coerência entre as diversas declarações e práticas do ex-ministro José Dirceu e suas declarações e práticas do passado. Ele saiu do governo cheio de ardor. "Vou percorrer o Brasil, vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo político democrático e querem desestabilizar o governo do presidente Lula", disse. Relevemos os misteriosos agentes da interrupção da democracia e ignoremos o fato de que a desestabilização do governo Lula se origina em seus próprios tremores internos. O que nos interessa é essa idéia de "mobilizar" o partido. Ora, enquanto esteve no governo, Dirceu não fez senão desmobilizá-lo!
Dias depois, uma tropa de choque de militantes, bandeiras do PT em punho, acolitou-o na volta, que pretendia triunfal – acabou sendo constrangedoramente triunfal –, à Câmara dos Deputados. O papel que ele representava era o de paladino da sagrada flama do partido, o guardião de seus puros ideais. Ora, não foi ele que, como poderoso chefão do ministério, não deu chance aos que apontavam a dissonância entre os rumos do governo e os antigos ideais do partido? José Dirceu precipitava-se no novo papel traído pela inconsistência. Parecia às voltas com uma crise de identidade. Quem sou eu? Que se espera de mim? Que espero eu mesmo de mim?
Na transmissão do cargo de chefe da Casa Civil à ex-ministra das Minas e Energia Dilma Rousseff, nova atropelada de papéis. "Camarada de armas" – foi assim que chamou a ministra, militante, como ele, de movimentos nascidos com a intenção de dar combate armado à ditadura militar. Num passo além, ele agora se fazia guerreiro – guerreiro como Simon Bolívar, Garibaldi ou Che Guevara, a espada e o trabuco erguidos em defesa de justas e nobres causas. Dilma Rousseff, sim, participou da chamada luta armada. Já Dirceu, em diversos depoimentos anteriores, disse que chegou a treinar guerrilha, mas nunca a praticou. "Não gostava daquilo, não me envolvi", alegou numa reportagem desta revista, em 2002.
Eis José Dirceu outra vez perdido no labirinto do ser e não ser. Ele próprio, numa conversa com jornalistas, na semana passada, transcrita pelo Estado de S. Paulo de quarta-feira, endossou as razões para crer que vive uma cruel crise de identidade ao afirmar: "Descobri que eu sou dois, eu e o personagem Zé Dirceu". O conjunto de tais elementos leva a uma única e inexorável conclusão. José Dirceu não existe. É uma invenção de Carlos Henrique Gouveia de Melo.
Da biografia do ex-chefe da Casa Civil, caso alguém não se lembre, consta um período de quatro anos em que viveu clandestinamente na pequena Cruzeiro do Oeste, no Paraná. Fazia-se passar por um empresário sem nenhum interesse pela política, tanto que, quando o viam com um jornal na mão, estava sempre aberto na página de esportes. Dizia-se corintiano fanático. Acabou casando com a próspera dona da Clara Confecções, loja de roupas femininas. Graças à ajuda dela, formou sua própria loja, o Magazine do Homem. O nome com que se apresentava era Carlos Henrique Gouveia de Melo.
Diante dos últimos acontecimentos, começa-se a desconfiar que essa história tenha sido contada ao inverso. Não foi José Dirceu quem inventou Carlos Henrique, mas Carlos Henrique quem inventou José Dirceu. Não existe um José Dirceu de verdade. Existe um Carlos Henrique. Um dia, cansado de Cruzeiro do Oeste e da monotonia da butique, Carlos Henrique pôs-se à busca de novas aventuras, e, sob o pseudônimo de José Dirceu, trilhou uma surpreendente carreira na política. No fundo, no entanto, continuou o mesmo pacato cidadão que gosta, mesmo, é do Corinthians, daí que muita coisa, por falta de gosto e de experiência, não tenha dado certo. Daí também tantas obscuras passagens na biografia de "José Dirceu" e tantas vacilações em torno de seus papéis. Carlos Henrique não teve tempo de pensar o personagem em todos os detalhes. Seria exigir demais do pobre dono do Magazine do Homem.
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A evocação de bois misteriosos, alguns dados por escondidos em indevassáveis paragens, outros tidos como puro fruto da imaginação, tem sido uma constante nas estripulias políticas nacionais. No auge da crise de desabastecimento do Plano Cruzado, o governo prometia buscar os bois no pasto, para garantir a oferta da carne. Na semana passada, o desafio era achar os bois de Marcos Valério, o publicitário apontado como o homem da mala no esquema de distribuição de dinheiro a partidos e deputados. Ele alegava que foi para comprar bois que fez tantos e tão volumosos saques nas contas bancárias de suas empresas.
A experiência brasileira sugere uma correção no "cherchez la femme", a norma tantas vezes invocada em investigações. Por aqui o imperativo é outro. É "cherchez le boeuf", procure o boi.
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