Algo de trágico se insinuou na pele desse presidente que tanto acreditou em si mesmo
Primeiro, a boa notícia: pelo que até agora aflorou do mar de denúncias que cerca o governo, o presidente Lula parece realmente não ter tomado conhecimento das embrulhadas e falcatruas praticadas em seu entorno, ou, se tomou, foi por notícia vaga e inconsistente. Agora, a má notícia: pelo que até agora aflorou do mar de denúncias que cerca o governo, o presidente Lula parece realmente não ter tomado conhecimento das embrulhadas e falcatruas praticadas em seu entorno, ou, se tomou, foi por notícia vaga e inconsistente.
A boa notícia conforta quem não quer ver o país mergulhado num impasse que conduza, de novo, à destituição do presidente, com toda a dor e o traumático sacolejo nas instituições que isso significa. A má notícia decepciona os que acreditavam haver um presidente a ocupar a Presidência. Os últimos acontecimentos confirmam a impressão, já antiga, de que Lula, como executivo, preferiu refugiar-se nas artes da levitação. Ele não governa. Prefere flutuar acima dos desagradáveis assuntos do dia-a-dia. Não lhe agrada ter as mãos sobre o leme da administração. Prefere pairar acima, como gaivota.
O pecado original desta Presidência é ter confundido o começo com o fim. Ao se consagrar nas urnas, na histórica eleição que levou um antigo metalúrgico ao posto máximo do país, Lula ficou tão feliz, mas tão feliz, que a partir de então fez da existência um moto-contínuo de comemorações. Realmente não foi pouco, para "o menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos", como ele lembrou no discurso de posse, ter chegado aonde chegou. Para qualquer um, na verdade, e não apenas para quem viveu infância de retirante e adolescência de favelado, chegar à Presidência é uma proeza de gloriosas proporções. Só que não é um fim em si mesma. É, ao mesmo tempo, um começo – o começo do desafio de, por meio de ações diárias, minuciosas e persistentes, transformar o mandato em algo profícuo. Lula ignorou que a vitória era um começo. Achou que era só um fim. Nesse engano, ele se perdeu.
A agenda presidencial se constituiu, ao longo desses dois anos e meio de governo, mais à feição das festividades que do trabalho. Os compromissos com astros da TV, do samba ou da música caipira mereceram nela lugar privilegiado. O presidente, nessas ocasiões, sentia-se em seu elemento. "Morram de inveja", disse aos jornalistas, ao posar para foto ao lado da dançarina do É o Tchan!. As reuniões ministeriais eram ocasião para copiosas churrascadas. E, para culminar, havia as viagens internacionais, meia centena, em dois anos e meio – expressões de uma política externa que se queria tão revolucionária que ia mudar as relações entre os povos. Enquanto se mendigava, nos quatro cantos do mundo, um lugar no Conselho de Segurança, bom mesmo era receber dos estrangeiros os louros devidos ao espécime raro do operário tornado presidente. De quebra, as viagens proporcionavam os prazeres do turismo, Paris, Roma, o Taj Mahal, os palácios chineses – eh, mundão grande e cheio de coisa linda para ver! Quanto à chatice de traçar rumos e decidir, para que se incomodar, se ele tinha formado "o melhor ministério que o país já teve"? Na hora em que não havia outro jeito e a batata quente lhe estourava nas próprias mãos, o sofrimento era grande. Que o diga a história aflitiva, tortuosa e sem rumo daquilo que, há quase um ano, vem sendo chamado de "reforma ministerial".
A vitória eleitoral fez um grande mal ao presidente. Ele passou a acreditar em si mesmo muito além do que seria razoável. Se tinha conseguido a façanha suprema de chegar à Presidência, o que não conseguiria? Se o milagre maior tinha se dado, por que não acreditar que outros se seguiriam? Não precisaria mais se mexer, já dominava o segredo da varinha de condão. "Faça-se o Fome Zero", e o Fome Zero se faria. "Faça-se o maior programa social já visto neste país", e o programa se faria. Faça-se a retomada do crescimento, a distribuição de renda, o respeito pelo Brasil no mundo. "Nunca se fez tanta coisa", dizia, e o pior é que acreditava nisso. Enquanto o presidente confiava na infalibilidade de suas mágicas, a devassidão e a esbórnia corroíam as entranhas de seu governo.
E assim chegamos à festa de São João celebrada no Rancho do Torto enquanto Brasília ardia na fogueira dos escândalos. Não, não foi uma nova edição do baile da Ilha Fiscal. Na Ilha Fiscal, o governo imperial ofereceu uma faustosa recepção aos chilenos em visita ao país, e os grandes do regime dançaram até 5 da manhã, sem saber que a conspirata republicana estava na iminência de dar o bote. No Torto, dançou-se o forró sabendo que a República ardia em chamas. Foi uma tentativa de perpetrar o último milagre: o de fazer crer que a vida seguia, e no mesmo ambiente de celebração de sempre. Nhô Lula era no entanto um rei nu, sob os farrapos de caipira. Algo não só de patético, mas de trágico, se insinuou, com o veneno dos escândalos, na pele desse presidente que acreditou tanto em si mesmo.
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