A lei e a ordem são o pré-requisito da civilização, ensina Samuel P. Huntington, depois de expressar preocupação com o paradigma do "puro caos", simbolizado pela ruptura do sistema normativo, as ondas criminais, as máfias e os cartéis de drogas, a debilitação da família, o declínio da confiança e da solidariedade, a expansão da violência e os Estados fracassados. A globalização do caos pega o Brasil ainda de calça curta. Não atingimos, ainda, idade adulta, pelo menos no que diz respeito à democracia, que sobe e desce na gangorra das crises, entremeando, desde 1930, o peso da ditadura com a leveza da liberdade. Pois bem, esta atual crise, fermentada pela adrenalina de eventos cada vez mais escandalosos, não se limita a aspectos pontuais de denúncias que exibem negócios escusos entre agentes da representação política e do Poder Executivo. Há uma crise bem maior e mais grave, cujos reflexos se fazem sentir na multiplicação de sístoles esporádicas. Trata-se da crise da juvenilização institucional.
A Constituição de 88 criou um amplo arco de defesa social. Estruturas se organizaram, novos quadros ingressaram no Ministério Público e na magistratura. A política alçou vôo, transformando-se em empreendimento. Os partidos afiaram suas facas para cortar o bolo do poder e formar correntes para dominar os espaços públicos. A mídia entrou pelo País afora, capilarizando informações e conhecimentos, ela própria se transformando em grande negócio. Gerou-se, assim, o ambiente para o estouro da boiada. A fulanização política amainou o fogo dos partidos. O País engalanou-se para receber o Estado-espetáculo. Heróis, guerreiros, super-homens passaram a trombetear coragem, civismo, ética, moral, segurança, proteção. As esferas institucionais - Judiciário, Ministério Público, Parlamento, Poder Executivo - passaram a freqüentar os palcos da publicidade, em performances espetaculares, e seus agentes aprenderam uma parolagem de expressões criativas, inventos engenhosos e artifícios.
Sob esse guarda-chuva, certos atores da vida pública foram perdendo as estribeiras, estuprando a lei por todos os lados, invadindo competências, espetacularizando a política e carnavalizando ações policiais. O espelho de Narciso é pequeno para refletir tantas vaidades. Essa Operação Narciso, com 250 policiais federais armados, sob o holofote da mídia, em torno da megaloja Daslu, em São Paulo, nada mais é que a expressão rematada do Estado pirotécnico em que vai se transformando o País. A prisão da dona da loja paulista denota claramente a intenção estratégica de desviar a atenção do tiroteio que abate a imagem do governo. Mas "o povo gosta", acentua o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, fiel à doutrina do "panis et circensis" dos tempos do imperador Nero e parecendo querer resgatar a desgastada luta de classes. Para fechar o espetáculo com chave de ouro só falta mesmo o grito festivo com que as bacantes evocavam Dionísio, deus do vinho e do delírio místico: Evoé!
Promotores imaturos, alguns até cheios de entusiasmo cívico, juízes inexperientes, irremediáveis narcisistas, e policiais federais, clones de tropas de choque nazistas, se juntam nessa tragicomédia de ações bombásticas. Quem é o cidadão de bom senso que não deseja ver a mão implacável da Justiça sobre corruptos e criminosos? Ora, que a justiça se faça, mas dentro dos ritos processuais. Ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso é o que diz a Constituição. A barbárie, porém, instalou-se na esteira do mote "todos são culpados até que provem inocência". Escritórios de advogados são arrombados, documentos são apreendidos, mesmo os de caráter privado, que não têm relação com os casos apontados para averiguação. Big Brother surge com seu olho aterrorizador. Todos os nomes constantes das agendas de denunciados passam a ser suspeitos.
E assim a vida pública se vai dobrando ao império dos signos. Tudo vale a pena fazer para encantar as massas. O conselho do matreiro cardeal Mazarino, sucessor de Richelieu, dá o tom: simula e dissimula. Nas CPIs, a simulação assume proporções assombrosas. Depoentes contornam a verdade. Enquanto isso, o chefe da Abin, a agência de inteligência do governo, Mauro Marcelo, chama os deputados de "bestas-feras", perde o cargo e recebe do presidente do Senado o troco: é um "destrambelhado". A mixórdia é geral. Nas sombras da eternidade, Montesquieu, também jurista, encontra-se com o velho Rui e descreve sua visão de Brasil: "Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois há boas leis por toda parte." Triste, o patrono dos advogados lamenta: "Vejo lá assomar excentricidades de cinismo, fabulosas variantes de imoralidade, que surpresam momentaneamente a atenção do espectador, e já nem lhe fazem mossa à memória."
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