Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 20, 2005

Para entender prisões e ações policiais MIGUEL REALE JÚNIOR

folha de s paulo

M uita perplexidade geram os recentes acontecimentos policiais: a prisão de pessoas sem periculosidade, conduzidas algemadas por agentes com metralhadoras a tiracolo, vestidos em roupas de campanha em plena av. Paulista e acompanhados pela imprensa, como convidada especial.
Cabe, então, indagar: quando tem cabimento uma prisão? Quais os limites da ação repressiva da polícia? Quando pode o Judiciário determinar a custódia cautelar no decorrer do inquérito ou do processo?


Cabe, então, indagar: quando tem cabimento uma prisão? Quais são os limites da ação repressiva da polícia?


Essas perguntas levam ao campo sensível da viva tensão entre dois direitos: o de liberdade do indivíduo e o do exercício legítimo da força pelo Estado em defesa de bens essenciais da sociedade.
Em que caso se pode limitar a liberdade, antes mesmo de haver culpa reconhecida em processo regular, no qual houve ampla defesa?
A Constituição Federal, ao consagrar o direito de liberdade, proclama, como seu corolário, a presunção de inocência até condenação em sentença imodificável. Esses direitos fundamentais não implicam desarmar o Estado de meios para realizar a necessária apuração dos fatos delituosos, visando a municiar o processo de provas para acusar o autor de um delito.
A perda da liberdade antes da condenação pode, então, ser decretada, mas apenas em circunstâncias excepcionais, quando a prisão se revela essencial para o processo. Há três hipóteses de prisão anteriores à condenação: flagrante, temporária e preventiva.
A prisão em flagrante ocorre quando a pessoa é detida no momento mesmo em que pratica o crime ou logo em seguida, após perseguição. A realização de qualquer delito intencional permite a prisão em flagrante: por exemplo, dar um soco no rosto da vítima. Há crimes, todavia, cuja execução se prolonga no tempo, como o de seqüestro, hipótese na qual o delito está a se realizar, permanecendo o estado de flagrância enquanto durar o encarceramento da vítima. A importância da prisão em flagrante reside na colheita da prova, ouvindo-se de pronto as testemunhas e o autor do delito, que poderá ser solto, com ou sem fiança, se não for caso de prisão preventiva.
A prisão temporária, instituída pela lei nº 7.960, de 1989, não se confunde com a prisão para averiguação. Prende-se não para apurar se houve um crime, mas desde que haja precisos elementos indicativos de sua ocorrência. Seu prazo é de cinco dias, renováveis por mais cinco, não constituindo meio de constrição para obter confissão.
Cabe apenas em relação a alguns crimes indicados na lei, como seqüestro, homicídio ou contra o sistema financeiro, e não se justifica porque o indiciado valeu-se do direito ao silêncio. Além do mais, não basta a existência do crime. É exigível que a limitação da liberdade revele-se imprescindível, seja porque o autor do delito não tem residência fixa ou identidade esclarecida, seja porque há risco de desvio de provas ou de fuga.
O crime, por ser grave, não justifica a prisão temporária. Deve-se acrescer à gravidade do crime a comprovada necessidade da prisão, a ser devidamente fundamentada pelo juiz ao decretá-la.
A prisão preventiva é, também, uma medida excepcional, por ser cumprimento de pena sem comprovação da culpa. Apenas se legitima essa custódia preventiva se, diante de indícios precisos de ser o réu o autor do crime, considera-se a prisão imprescindível para impedir que se exima do processo e da condenação ou que interfira na realização de provas, intimidando testemunhas ou surrupiando dados, a partir de receios concretos.
Não pode ser decretada como exemplaridade, para intimidação da sociedade, pois assim se instrumentaliza a pessoa, encarcerada não por ser preciso, mas para que sua prisão demova outros de cometer crimes.
A prisão preventiva, de outra parte, não se justifica tão-só em face da gravidade do crime, visto não ter por finalidade punir antecipadamente, pois seria afronta à presunção de inocência. Nem o clamor público ou a repercussão do fato na mídia a justifica, o que igualmente seria um julgamento antecipado da opinião pública.
Deve-se no decreto de prisão preventiva fundamentar motivadamente a necessidade da medida, com base em dados de fato e não em conjeturas, pelo que é insuficiente a mera repetição dos termos legais, afirmando ser a prisão "conveniente para a instrução criminal". Ademais, como o réu está preso, o processo há de ter tramitação rápida, mesmo porque pode sobrevir uma sentença absolutória.
Por fim, diante das recentes blitze espalhafatosas da Polícia Federal, cumpre realçar que o uso de algema, medida de força e aviltante, apenas se legitima se houver desobediência ou resistência, conforme estabelece a lei.
Em suma, em face dos direitos fundamentais acima referidos, deve-se proclamar a absoluta necessidade da prudência e da razoabilidade na aplicação de medidas antecipadas de constrição da liberdade, a melhor maneira de prevenir a arbitrariedade estatal e afastar a tentação de extrapolar os limites do uso legítimo da força pelo abuso de autoridade.

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