A turbulência política não abala a
estabilidade da economia, que se firma
como grande conquista da nação
João Gabriel de Lima
Em meio a tanta notícia ruim, um fato relevante acabou ficando em segundo plano. Apesar de uma crise política espessa, a economia continua funcionando sem sobressaltos até agora. Não se viu, como em outras crises, o dólar disparar – muito pelo contrário, havia muito tempo as cotações não atingiam patamares tão baixos. As piores projeções do mercado para a inflação de 2006 não passam de 6,5%. Ainda na última sexta-feira, o ministro Luiz Fernando Furlan anunciava que as exportações em junho atingiram 10 bilhões de dólares, pela primeira vez na história. O melhor de tudo: nenhum desses indicadores foi abalado pela crise política. Mais do que uma notícia auspiciosa, trata-se de um fato histórico – e é na história que se devem buscar explicações para o fenômeno. Nos países em desenvolvimento, é comum que política e economia se influenciem mutuamente. Em 1954, no fim de seu mandato, premido por uma crise política e pela oposição persistente de Carlos Lacerda, Getúlio Vargas mandou a economia às favas. Passou a condenar as remessas de lucros das empresas estrangeiras, ele que sempre cortejara o capital internacional. Antes, autorizara o aumento do salário mínimo em 100%, mesmo sabendo que isso quebraria o Estado. Dez anos depois, a instabilidade e a tibieza de seu afilhado político, João Goulart, ajudaram a piorar a crise econômica que o Brasil enfrentou no período imediatamente anterior à ditadura militar – pouco antes do golpe, a inflação passava dos 90% ao ano, a maior já vivida pelo país até então. No Brasil de Lula, nada disso ocorre.
Jose Paulo Lacerda/AE |
RECEITA ORTODOXA O ex-ministro Delfim Netto: proposta de déficit zero endossada pelo presidente Lula |
Novas denúncias de corrupção surgem a cada semana, e, em vez de apelar para o populismo como Vargas e Jango, o presidente petista quer se aprofundar ainda mais na austeridade econômica. Nas últimas semanas, Lula decidiu endossar uma proposta do deputado Antônio Delfim Netto que propõe zerar o déficit nominal do país, ou seja, o montante necessário para cobrir as despesas públicas, encargos com juros e amortização da dívida do setor público. Isso implica cortar ainda mais os gastos do governo. Na prática, depois do "fome zero" de parcos resultados, o governo acena com o "déficit zero". Surge a pergunta: o que mudou no Brasil?
A resposta começa pelo discurso do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, na semana passada. Durante a entrega do Prêmio Melhores e Maiores, promovido pela revista Exame, da Editora Abril, ele reafirmou seu compromisso com uma política monetária austera e com as reformas que o Brasil precisa fazer para ser uma economia cada vez mais competitiva (veja reportagem). "Costumo dizer que o sistema imunológico do Brasil está muito mais fortalecido, e ganhamos tecido muscular para fazer frente, com muito mais tranqüilidade, às oscilações da economia internacional", disse o ministro na conclusão de seu discurso. Nessa frase está a chave do triunfo de Lula e Palocci. Eles souberam como lidar com um desafio histórico: pilotar a economia no mundo globalizado. Getúlio Vargas chegou ao poder no Brasil numa época em que a guerra atrapalhava as trocas comerciais e os Estados Unidos viviam a era do New Deal, em que a economia era altamente subsidiada. Já Lula governa num tempo em que o intercâmbio entre as nações é intenso como nunca e, com isso, exige-se uma transparência inédita no jogo econômico. O ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, que está escrevendo um livro sobre a história da economia de mercado, lembra que na época de Vargas essa transparência não era importante. "O capital externo que entrava era o das agências de fomento. Hoje, os governos se financiam diretamente no mercado e têm de respeitar seus mecanismos de funcionamento", diz Mailson, atualmente sócio da empresa de consultoria Tendências.
Regis Filho | Jorge Rosenberg |
FRACASSOS HETERODOXOS Prateleiras vazias durante a vigência do Plano Collor II e broches dos fiscais do Plano Cruzado: tristes lembranças dos choques antiinflação do passado |
As regras do jogo são claras. Os investidores colocam seu dinheiro nos países onde existe melhor perspectiva de retorno e menos risco de quebra. É necessário que as nações dêem garantias. Uma delas se chama superávit primário – e o governo Lula vem se esmerando em consegui-lo, por mais que a oposição esbraveje que esse dinheiro faz falta em áreas como a saúde e a educação. Num mundo em que as contas dos países e as intenções dos governantes são colocadas na mesa, e a partir daí os que têm dinheiro decidem onde vão investi-lo, faz sentido o gesto do presidente Lula de bancar a idéia do déficit zero. É um objetivo que pode parecer distante. O Chile conseguiu essa proeza graças às reformas feitas durante o governo de Augusto Pinochet. Numa ditadura, no entanto, é mais fácil fazer uma revolução na previdência sem os protestos dos aposentados que perderão parte de seus proventos, para ficar num exemplo. Para atingir a meta, o governo Lula teria de, entre outras coisas, acabar com a obrigatoriedade de gastos em educação, uma lei difícil de passar pelo Congresso. Por mais que a meta seja de viabilização complexa, ainda mais numa época de crise política, a atitude de Lula denota um compromisso com a austeridade que encanta os investidores nacionais, internacionais e as agências de risco. Elas estão aguçadas como nunca, ainda mais depois que se soube que um país como a Argentina, que parecia ter feito a lição de casa, trancava no armário os tenebrosos esqueletos dos gastos de suas províncias. A Argentina quebrou e levou com ela parte da credibilidade dos países emergentes. Num mundo assim, não é pouco o que Lula e Palocci vêm fazendo no sentido de conquistar a confiança internacional.
Também colabora para essa confiança o enorme avanço que o país fez na área institucional. Num recente levantamento feito pela empresa de consultoria Monitor Group, fundada por professores da universidade americana Harvard, o Brasil foi comparado a outras nações emergentes e o quesito em que tirou as melhores notas foi exatamente o da solidez das instituições. O país, nessa área, está à frente da maior parte dos chamados Tigres Asiáticos e até de uma potência como a China. No âmbito econômico, esse avanço se traduz principalmente pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que amarra as mãos dos governantes gastadores, e de um Banco Central que é independente na prática (apesar de não o ser formalmente), tendo assim autonomia para perseguir metas de inflação.
Na época em que Lula concorria à Presidência, em 2002, houve quem pensasse que existiam dois receituários econômicos em disputa. Um, "neoliberal", incluiria austeridade econômica, Banco Central independente e controle estrito da inflação. Outro, "intervencionista", seria mais leniente com os gastos públicos e não se incomodaria com um pouco de inflação se houvesse a contrapartida do crescimento econômico. Lula adotou o caminho da austeridade não porque tivesse sido pressionado pelo FMI ou para se indispor com a ala à esquerda do PT. Fez isso porque todos os itens da receita intervencionista já haviam sido testados, sem sucesso, por seus antecessores. "Historicamente, tomamos todas as decisões incorretas possíveis. Assim, era fácil encontrar o caminho certo. Era só não repetir os erros anteriores", avalia o economista Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas. Ele se refere ao fato de que o excesso de gastos públicos gerou inflação, a inflação colaborou decisivamente para a iniqüidade social do país e as mágicas com o câmbio mais criaram problemas do que soluções. Além disso, o país persegue metas inflacionárias não porque tenha adotado uma linha "neoliberal", mas .porque sua população – especialmente a de menor poder aquisitivo – sabe os estragos que aquilo que antigamente se chamava carestia provoca no orçamento doméstico. Um governo que deixasse a inflação voltar à casa dos dois dígitos dificilmente seria reeleito, e Lula sabe disso.
Alguns componentes específicos da atual crise política colaboram para a atual estabilidade da economia. O primeiro é o fato de que o núcleo econômico do governo, Antonio Palocci à frente, não foi atingido pelas denúncias de corrupção. Coincidentemente, o maior alvo das farpas de Roberto Jefferson dentro do primeiríssimo escalão – o ex-ministro José Dirceu – era justamente o principal opositor, ainda que veladamente, das diretrizes da economia, não por razões ideológicas, mas pela pura e simples briga por poder. Com a volta de Dirceu à Câmara, Palocci emergiu como o número 2 indisputado do governo. É inevitável reconhecer o papel de Lula no sentido de garantir a estabilidade. Ele sempre subscreveu a política de seu ministro da Fazenda, e faz questão de enfatizar que está com ele em suas aparições públicas. Os investidores sabem, portanto, que as regras serão mantidas qualquer que seja o candidato eleito em 2006. Sabem que a política macroeconômica não mudará, seja com a reeleição de Lula, seja com um tucano subindo novamente a rampa do Planalto. O que caracteriza os países de Primeiro Mundo é que os governos passam mas os preceitos básicos permanecem: o Congresso, as leis, as regras econômicas, a democracia, enfim, se mantêm constantes qualquer que seja o governante. Talvez no Brasil isso ainda seja uma meta distante. É certo, no entanto, que nestes dez anos de governo de FHC e Lula o país caminhou consideravelmente nessa direção.
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O que dizem os que apoiaram Lula
Para boa parte do empresariado, a perspectiva de vitória do PT na eleição de 2002 era assustadora. A trajetória do partido justificava o medo. O discurso petista tinha como marca registrada a aversão ao capital internacional e palavras de ordem como o calote da dívida externa. Dois anos e meio depois, esse temor está afastado. No entanto, entre os empresários que apoiaram Lula desde o início, as opiniões se dividem. Alguns estão francamente arrependidos do apoio ao PT. E entre os que se mantêm convictos de ter feito a melhor escolha há críticas ao governo de Lula.
Rafael Jacinto/Valor |
SÉRGIO HABERFELD,
EX-PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA DIXIE TOGA
"A corrupção sempre existiu. O que ocorreu no governo do PT é que os operadores não tinham prática e começaram a se enroscar. O risco é vermos repetir-se no país uma situação de populismo semelhante à da Venezuela. Lula conseguiu se manter imune à crise, mas não se pode isentá-lo da responsabilidade pelo que acontece ao seu redor. Como a economia vai caminhando bem, o impacto dessa crise para as empresas é mínimo. Não me arrependo de ter apoiado a candidatura de Lula, mas sinceramente nunca vi tamanha inexperiência. Isso é o que mais assusta."
Paulo Liebert/AE |
SYNÉSIO BATISTA DA COSTA,
VICE-PRESIDENTE DA CCE
"Desta vez, a crise política não vai afetar a indústria porque a economia está sólida e madura. Além disso, o país não agüenta outro impeachment nem a renúncia do presidente. Apoiei a candidatura de Lula em 2002, pedi apoio aos amigos e acreditava que o presidente seria a nossa última esperança de mudança de um modelo econômico. Agora, estou me sentindo um bobo. Jamais apoiaria o presidente novamente em caso de reeleição. A única pessoa que acredita que ele está isento nessa história é ele mesmo."
Sergio Castro/AE |
LAWRENCE PIH,
PRESIDENTE DO MOINHO PACÍFICO
"A economia brasileira está sólida, o que impede contágios da crise política. Mesmo assim, as empresas interromperam a execução de novos projetos e estão aguardando o desfecho da crise. Há indícios, mas não se comprovaram irregularidades. Os empresários estão suficientemente realistas para saber que é difícil falar em moralidade no mundo político, até porque mantêm uma relação incestuosa com o governo. Não me arrependo do apoio a Lula. Ele está fazendo um bom governo e trazendo estabilidade econômica para o país."
Flavia Vitoria/AE |
IVO ROSSET,
PRESIDENTE DA VALISÈRE
"Pela primeira vez em muitos anos, a economia está descolada da política e não há reflexos para o setor real da economia. Essa crise política só trará benefícios ao país. Será possível fazer uma reforma política e uma reforma ministerial, o que permitirá o enxugamento da máquina administrativa, essencial para o país. O governo Lula tem sido excelente para os empresários, sempre disposto ao diálogo. A imagem do presidente não sofreu desgaste, o que ocorreu foi um desgaste da classe política. Não me arrependo de ter apoiado Lula em 2002 nem estou decepcionado."
Marina Malheiros/AE |
FERNANDO GASPARIAN,
DONO DA EDITORA PAZ E TERRA
"Essa confusão toda atrapalha muito o ambiente de negócios do país. Os empresários estão desanimados porque essas denúncias precisam ser esclarecidas e não vejo esforço do governo em agilizar as investigações ou para resolver os problemas. Essa demora deixa os empresários mais reticentes e desanimados e cria um efeito psicológico negativo que pode frear novos investimentos. Votei no Lula em 2002 porque esperava uma coisa diferente, esperava mudanças importantes na área econômica para fazer o país crescer de maneira sustentada. Nada disso aconteceu."
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