Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 13, 2005

No fim do arco-íris, o déficit nominal zero CARLOS LESSA

 folha de s paulo

Diz a antiga sabedoria turca: se quereis vender corvo, pinte-o por rouxinol. Aqui, no país da maior taxa de juros do planeta, vamos aprendendo com o presidente do Banco Central que o vôo de galinha de 2004/5 da economia teria sofrido uma "desaceleração" por causa da "quebra de safra" e da "redução de renda" devido à inflação. Doutor Meirelles comemora a taxa de juros do período, em relação à de 1999/2003.
É impressionante o mar de rosas em que nada o doutor Meirelles. Afirma que o Brasil tem condições -a economia vem crescendo, com saldo positivo nas contas externas- para enfrentar as turbulências externas e questões internas. Com a taxa de juros elevada, atrai capital cigano de fora, que lhe permite valorizar o real. Ao fazê-lo, produz alguma queda da inflação. Fixa uma meta irreal de inflação e justifica a manutenção dos juros altos.
A despesa com juros cresce de trimestre a trimestre. O investimento público está zerado, porém o supersecretário Levy quer ampliar o superávit fiscal. O ministro da Fazenda fala da necessidade de "blindarmos o gasto público". Isso exigirá, segundo Delfim Netto, novo porta-voz do grupo, a meta de déficit nominal zero. O objetivo seria logrado em três, cinco ou seis anos, segundo o desempenho da política econômica. Independentemente de sua consecução, teria, para seus proponentes, o mérito de confirmar que o Brasil continuará com a mais alta taxa de juros real do mundo. A proposta do déficit zero quer cortes nos únicos gastos públicos que restaram: os sociais. Falam em um "choque de gestão" que lhes permita comprimir os salários de pessoal dos serviços de educação e saúde.
A proposta manteria a fidelidade da rapina financeira praticada contra o país. Os aplicadores nos hiper-rentáveis títulos de dívida brasileira continuariam fiéis ao bom-bocado e manteriam seu apetite aplicando os juros obtidos em novas emissões brasileiras.
A compressão adicional no gasto público, atingindo as insuficientes redes de proteção social brasileiras, é vendida por Delfim, Palocci, Levy e Meirelles -para não falar dos epígonos- como a eliminação do déficit nominal. No imaginário popular, é corrente que o governo gasta muito e mal. É péssimo o gasto endêmico da corrupção, porém é como um pigmeu em relação aos quase R$ 150 bilhões pagos por juros.
Meirelles certamente não desconhece os sinais de turbulência no horizonte. Os EUA praticam gigantesco déficit público (US$ 400 bilhões) e têm contas externas desequilibradas. Sua dívida pública em expansão é rolada sem inibições. Os EUA não praticam política neoliberal, por isso crescem e preservam empregos. O Fed não segue o suicida modelo de metas de inflação: além do controle de preços, tem a responsabilidade pelo nível de atividade da economia. Entretanto a inflação americana subiu e, provavelmente, haverá nova elevação dos juros.
A Europa diz que preservará suas instituições social-democratas. Esse é o sentido da rejeição da proposta de Constituição Européia por franceses e holandeses. Ambos repeliram a expressão liberal "direito a trabalhar" e conservaram o "direto ao trabalho", como obrigação político-econômica. É brincadeira dizer que a China é economia de mercado. Os tigres asiáticos são, a seu modo, nacional-desenvolvimentistas.
No golfo Pérsico, segue o drama do petróleo. O barril deve terminar o ano acima de US$ 80. A alta não afeta a Petrobras nem nos inquieta quanto ao abastecimento, mas deverá inspirar políticas defensivas em nível mundial, com repercussões desconfortáveis para o comércio exterior brasileiro.
Embaídos no conto do vigário liberalizante da globalização, restam a África Subsaariana, em acelerada degradação, e nosso continente. Hoje, na Venezuela, o presidente constitucional Chávez usa a PDVSA como alavanca de políticas sociais e suporte ao desenvolvimento nacional. Na Argentina, Kirchner e Lavagna aplicaram quarentena de um ano à entrada de capital estrangeiro. Seu risco-país já está próximo do do Brasil.
Enquanto isso, Meirelles despojou de qualquer exigência o movimento de capitais de curto prazo. Só solicita o registro no BC.
Meirelles diz que a economia não entrou em queda -só "reduziu o ritmo de crescimento". É sabido que no Brasil qualquer taxa abaixo de 5% ao ano não absorve o contingente que chega ao mercado de trabalho. Temos 23 milhões de desempregados e subempregados, para uma população economicamente ativa de 80 milhões. Para o panglossiano Meirelles, em sua nuvem cor-de-rosa, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis: um mundo pró-juros, pró-rentistas, pró-balanços bancários. Tudo o mais é irrelevante, subordinado.

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