O Globo
A medicina ensinou o risco do mal súbito, o futebol deu novo sentido à expressão morte súbita. Na política, aprendemos agora que existe amizade súbita. O sentimento avassalador uniu Marcos Valério a Delúbio e o fez endividar sua família e empresas para agradar ao neo-amigo; uniu também Cesar Oliveira a Sílvio Pereira e, meses depois de se conhecerem, já se materializava num mimo de R$ 80 mil. Essas não foram as únicas revelações da CPI dos Correios. Ela avançou muito, inclusive na semana em que foi submetida a 24 horas de mentiras.
A CPI que o governo tentou evitar e, depois de aprovada, tentou controlar nomeando presidente e relator avança a cada depoimento. Esta semana, os hábeas-corpus preventivos de Sílvio Pereira e Delúbio Soares deixaram a sensação de que se pode mentir ou omitir impunemente. A frase-mantra "me reservo o direito de não responder" e a onipresença dos advogados irritaram, é verdade. Mas como a juíza Denise Frossard explicou, esses são direitos dos cidadãos.
A dúvida levantada por alguns integrantes da oposição, como o deputado Onyx Lorenzoni, é se esse direito se estende a terceiros. O acusado pode ficar em silêncio para não se incriminar, mas ele pode também deixar de revelar o que sabe sobre terceiros? A dúvida permanece.
A semana termina com Sílvio Pereira pedindo desfiliação do PT. Acusa uma suposta conspiração. Se há, ele faz parte dela a bordo do seu Land Rover. Os dois ex-dirigentes do PT foram eloqüentes em seus silêncios. Houve um momento curioso em que, até interrogado pelo petista José Eduardo Cardozo, Delúbio se negou a responder.
Os pedidos de hábeas-corpus foram uma informação em si. Justos, previstos em lei, mas reveladores dos temores dos depoentes. O uso que fizeram do direito de permanecer em silêncio foi ainda mais transparente: eles negavam até informações básicas como salário. A estratégia ensinada pelo advogado a Delúbio foi não repetir uma resposta. A cada pergunta reapresentada, ele repetia que já respondera anteriormente. Melhor assim, porque a verdade se pode repetir mil vezes que aparecerá da mesma forma. A mentira é perigosa, porque reaparece sempre com uma nova cara e costuma constranger quem a profere.
Durante a semana, abriu-se um fosso que separou a banda boa do PT do reino de Delúbio. O partido, que unido tentara proteger Delúbio, Sílvio & Marcos Valério da quebra do sigilo e da convocação, já estava separando as águas antes do fim da semana. Se a CPI acabasse hoje, já se saberia que, na direção do PT, foi montado, no mínimo, um caixa dois e que o presidente da República acredita que isso é feito sistematicamente no Brasil. Esse conformismo com o ilícito é o fato mais estarrecedor desta longa semana. Um presidente só pode dizer que um crime virou rotina se o fizer com indignação, contando, em seguida, como pretende vencer o mau comportamento. Presidentes não justificam o mal feito.
Ficou claro também esta semana, com as revelações do que houve no BRB e no Banco do Brasil, que o esquema de irrigação financeira era vasto, bem urdido, e vai além da cobertura dos gastos de campanha. O Banco do Brasil tem estado, semana após semana, em piores lençóis. Chamado a atenção por sonegar informação à CPI, disse que só agora entendeu que precisava também dizer os beneficiários dos saques. O Banco do Brasil é mais antigo que a República. Ele não precisa, não pode e não deve ligar-se a nada que seja passageiro no país. Se o fez, que corrija seus passos.
De qualquer maneira, todo este caso é único pela rapidez com que o fogo se alastrou. Começou com um gesto inesquecível em que R$ 3.000 entram, displicentes, no bolso de um funcionário dos Correios. De lá para cá, o escândalo desfez a base do governo, dizimou o núcleo duro, provocou uma reforma ministerial, mudou a direção de estatais, derrubou a direção do PT e produziu uma montanha de impressionantes revelações. Até onde se foi é longe demais para acender o forno de assar pizzas. Já não há mais pizza possível.
Quem vê fica achando que tudo aquilo serve apenas para os excessos exibicionistas de alguns parlamentares e para palanque de construção de mentiras. O deputado Eduardo Paes lembra, no entanto, que o efeito é mais vasto do que se imagina. Hoje a CPI está sendo divulgada instantaneamente e isso faz com que uma rede se forme na busca de detalhes que chegam aos blogs, aos e-mails. Os depoimentos produzem resultados inesperados, como o aparecimento do Land Rover, a tentativa de saque da conta da mulher de Marcos Valério.
— A quebra dos sigilos é a grande arma da CPI. Antes das entrevistas de Marcos Valério e Delúbio, a CPI já sabia dos empréstimos — disse o deputado.
Certamente as entrevistas foram precipitadas pela quebra do sigilo e pela aproximação dos depoimentos na CPI. O caixa dois admitido por Delúbio é fato grave, mas, no fim da semana, já estava claro que foi biombo para esconder crime maior. Muita coisa aconteceu nas últimas semanas. Tudo tão súbito que o presidente continua sem entender o que se passa. Os discursos de ontem mostraram, de novo, um presidente distante da realidade. Até o mercado financeiro, que vinha achando que nada atingiria a economia, mostrou ontem que, por fim, entendeu que não existe fronteira entre política e economia numa crise tão vasta.
Entrevista:O Estado inteligente
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