Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 10, 2005

Miriam Leitão :Avassaladoras

o globo

Quando for contada a história destes dias, os que virão não acreditarão nos relatos dos contemporâneos destes tempos de dúvida, espanto e desalento. A mais duradoura e sólida esperança do país está se desmanchando no ar pelo impacto de uma novela rocambolesca, contada por um personagem de ópera bufa e cujos detalhes vão se confirmando, dia após dia, diante de um governo atônito, incapaz de se defender.
As notícias têm sido avassaladoras. O tempo passou tão depressa que é como se tivéssemos entrado num acelerador das horas. Quem se lembra do presidente loquaz, eternamente em cima de um palanque repetindo o bordão: "nunca antes na história deste país?" Agora é verdade: nunca antes na história deste país uma crise progrediu tão rapidamente e pareceu tão imprevisível.


Para entendermos o intenso momento presente é preciso que separemos o que é normal do que é desvio nos fatos relatados por depoentes, acusadores, réus e testemunhas. É normal que um governo construa base parlamentar atraindo outros partidos; tem sido rotina fazer isso, em parte, com o troca-troca, mas esse vício da estrutura partidária brasileira virou crônico e é preciso corrigi-lo com aperfeiçoamentos no sistema político. Está claro, mas isso não explica toda a dimensão da crise atual. O que é absurdo e criminoso é fazer a maioria através da compra de parlamentares. Se for comprovado, é gravíssimo.

É normal que um partido vitorioso governe com seus quadros. É um erro aparelhar a máquina, se espalhando por todos os espaços, como uma ocupação de território inimigo. É normal que amigos sejam avalistas de amigos, mas não é normal que o amigo em questão seja fornecedor do governo e o amigo avalizado o partido do governo.

Assim, um por um, é preciso separar normal de irregular em cada história que apareça, em cada novo fato, mas o mais importante em horas como estas é não perder a confiança no país. Há toda uma geração que pode cantar hoje com o poeta morto, Cazuza: "Meu partido é um coração partido. E as ilusões estão todas perdidas." Como essa música ficou atual de repente!

Mas, para além do doloroso momento, é preciso ver racionalmente o quanto o Brasil avançou. Sei que não é hora de falar isso, porque o sentimento nacional está mais para o ceticismo e a generalização dos rótulos. Mas o tumor só foi localizado porque as instituições avançaram. Há 20 anos, não havia Secretaria do Tesouro, Orçamento unificado, Siafi, Coaf, fiscalização adequada no Banco Central. Não havia sequer a obrigação de se anotar nos cheques a quem eles eram destinados. O fim do cheque ao portador foi decisão, vejam só, de Collor de Mello. E isso permitiu encontrar mais facilmente o rastro dos seus próprios desvios. Anos atrás seria difícil, se não impossível, entender o tamanho de um desvio porque os valores monetários perdiam o sentido por causa da hiperinflação que corroía a moeda.

Há 20 anos, o país estava saindo de outro período de 20 anos em que a Polícia Federal prendia inimigos políticos do governo; a maioria deles, estudantes rebeldes, como devem ser os estudantes. Há 20 anos, não existia o Ministério Público independente.

As transferências de quantias absurdas para fundos de pensão de estatais eram feitas mensalmente, como rotina, sem que houvesse qualquer contestação dos fatos, como se as empresas pertencessem apenas aos seus funcionários e não ao contribuinte. Hoje continua a haver transferências e negócios nebulosos, mas há muito mais limites e controles.

Há 20 anos, não havia estrutura institucional para nada daquilo que se pega, apura e esclarece hoje. Ninguém poderia acompanhar uma CPI pela televisão, mesmo que hoje tenhamos que ver os grotescos espetáculos de exibicionismo e de conflitos primitivos. Não havia imprensa livre, ela não podia apurar, ela nem sabia como fazer isso; veio aprendendo com o tempo. Não é pouco o patrimônio de ter e manter a imprensa livre, afinal de contas, até na pátria da primeira emenda, uma jornalista do "New York Times" foi presa na última semana por não revelar sua fonte.

O Brasil tem avançado nas crises, entre crises e apesar das crises. Avanços conceituais, institucionais, econômicos e políticos sobre os quais é preciso falar sempre para que não se perca a noção da dimensão da tarefa executada.

O PT vai superar esta crise se souber como enfrentá-la e continuará a ser um dos grandes instrumentos da democracia brasileira. O governo, se mudar de atitude e começar a reagir, pode salvar o que resta do seu mandato. Em 2006, o país terá mais elementos para construir uma vigilância maior sobre fundos partidários e contribuições de campanha. Da mesma forma que ninguém é o dono da ética, como o PT se imaginava, ninguém é o dono da corrupção. É uma doença que ataca as sociedades. Nas democráticas, a doença é detectada e enfrentada. Momentos de revelações podem dar a idéia de que a doença é invencível. Mas ela se enfraquece a cada revelação. O Brasil não é um país de corrupção endêmica. É um país que tem sido duramente atingido por ela e que precisa aprofundar o trabalho de construção de valores e aperfeiçoamento dos mecanismos de controle.

Para os mais jovens que avaliam que esta coluna é otimista demais, eu digo: eu vi o Brasil melhorar, por isso sei que os avanços vão continuar.

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