no mínimo
O mínimo que se pode esperar de um presidente da República é que ele não fale mal de seu país quando for ao exterior em viagem oficial. Mas pelo visto nem isso mais se pode esperar do presidente Lula, que desta vez gastou seu avião francês de U$ 56 milhões para ir a Paris dizer, numa entrevista que parece uma peça de propaganda num governo que atolou até o pescoço do chefe pelo excesso de promiscuidade com publicitários, que seu partido só se meteu num escândalo sem fundo por fazer "o que é feito no Brasil sistematicamente".
É, até onde a vista alcança, esta é a primeira vez que um estadista latino-americano vai à Europa para pedir que o mundo o reconheça como representante de uma república da banana. Foi nisso que deu tratar Lula nessa crise como se ele fosse legalmente incapaz de responder pelos atos de sua administração. O zelo por sua inimputabilidade convenceu-o aparentemente de que todo mundo tem culpa no Brasil, menos ele, que como se sabe nunca sabe de nada. É a fórmula perfeita para qualquer instituição nacional, deixando intato o líder populista para o que der e vier.
Na campanha de 2002, era proibido chamar Lula de despreparado para o cargo. Mesmo que essa impressão de baseasse no fato de que ele nunca mostrou aptidão para o exercício de qualquer cargo administrativo, passou de fininho por um mandato de deputado federal, exerceu durante mais de uma década uma sinecura partidária em que seu único trabalho notório era concorrer à presidência de quatro em quatro anos, achar que isso era o currículo de um despreparado soava três anos atrás como preconceito.
No dia em que o candidato José Serra ousou exibir seus diplomas na TV, o PT veio abaixo. Lula mereceu desagravos, como se falar em diploma alheio o melindrasse abaixo da cintura. Os brasileiros resolveram pagar para ver. E, se hoje acharem que estão pagando mais do que esperavam, ou pagando num mercado político paralelo que ninguém, antes da visita de Lula a Paris, lhe explicou com funcionaria, a culpa pode ser de uma campanha eleitoral que deu aos brasileiros a esperança de viver num anúncio de Duda Mendonça. Mas o remédio também pode ser uma campanha eleitoral, porque cada vez que vai à urna o voto fica um pouco mais esperto e muito mais tarimbado.
Num palanque, essas coisas acontecem. Não deixam por isso de ser graves atentados ao principal direito do eleitor nessas ocasiões, que é se informar sobre quem lhe pede o voto. É o eleitor, embora não pareça, o sujeito da campanha. Os políticos são só o predicado. Tanto é assim que, quando concorre a um eleição, eles se intitulam candidatos. A palavra vem da mesma raiz latina que deu "candura" e derivados até na língua inglesa. Significa sinceridade. Refere-se à veste branca de quem em princípio nada tem a esconder como as noivas e os postulantes ao senado romano. Lula, fantasiado de "paz e amor" pela publicidade, foi tudo em 2002. Menos um candidato propriamente dito.
Mas no exercício do mandato esses truques eleitorais viram um perigo porque, como disse o próprio Lula, talvez inspirado pela vizinhança da Sorbonne, "trabalhar com a verdade é muito melhor". Segundo o presidente, numa entrevista que, por sinal, cheirava em si mesma a uma tapeação jornalística produzida pela máquina palaciana, "a desgraça da mentira é que você, ao contar a primeira, passa a vida inteira para justificar a mentira que você contou".
Nem é preciso ir tão longe, presidente. Basta o risco de passar o resto do governo justificando a mentira que contou para torná-la um mau negócio. E se um ponto já ficou claro há muito tempo nessa história toda é que Lula não está dizendo a verdade. O despreparo explica muita coisa. Mas não explica que ele apareça em Paris com a versão de crime eleitoral para os desmandos do PT que, em Brasília, recitada dias antes por Marcos Valério ou de Delúbio Soares, chegou aos jornais como indício de que os cúmplices tinham se acertado.
E quando Lula repete a mesma história, isso é o quê? Já era duro ouvir calado até agora aquela conversa mole sobre os assuntos do governo que o presidente sabe ou não soube. Ele não soube, por exemplo, que a Telemar, ao investir R$ 5 milhões em seu filho Fábio Luiz Lula da Silva, não estava apostando em joguinhos eletrônicos, mas num tipo de realidade virtual muito mais concreto. A Gamecorp foi uma experiência informal de privatização das PPPs.
Transformar o despreparo no maior trunfo de um presidente que não quis ouvir esse adjetivo durante a campanha tem tudo para ser a tal mentira que, uma vez acionada, leva o governo a um processo sem fim de descolamento da verdade. Porque o despreparo, sozinho, não explica tudo. Ele serve à primeira vista livrar o presidente do que ele não sabe. Mas não o livra do que tem a obrigação de saber. E, à medida em que aparecem mais coisas nessa crise que o presidente tem obrigação de saber, o projeto original de imunizar Lula custe o que custar acaba espalhando a infecção do governo pelo Brasil que ele atacou na França.
Entrevista:O Estado inteligente
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