Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 02, 2005

FERNANDO GABEIRA:Um parto para sair do século 20

Folha de S Paulo
  Você sabia que "Dom Casmurro" foi escrito por Machado de Assis? Essa pergunta toma quase toda a primeira página do "Diário Oficial" extra, publicado por Lula. O objetivo da edição era apenas cancelar uma medida provisória e abrir a pauta para que se aprovasse uma CPI chapa-branca, proposta por Sandro Mabel, por José Janene e pela bancada do PT.
O pior é que eu sabia que Machado escreveu "Dom Casmurro". Se for preciso, posso até depor sobre isso na CPI deles. São coisas da juventude, mas não posso fugir delas. Lembro-me de que o livro começa mais ou menos assim: "Numa noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei um rapaz do bairro que conhecia de vista e pelo chapéu".
Não tenho provas, mas posso enfrentá-los assim mesmo. Na verdade, enfrentá-los com humor é necessário neste momento. Temos franqueado uma linha, transposto uma tênue fronteira no Congresso. Estamos nos insultando com alguma constância. Isso não é bom. Parece que alguns deles querem arrastar também as instituições ladeira abaixo, mas, entre os acusadores, há excesso também. Os insultos não ajudam as investigações nem fortalecem a defesa.
É preciso reencontrar a linha de fronteira e isso não é fácil quando as paixões e ressentimentos estão muito acesos. A crise possibilita algumas saídas. Uma delas é a de afastar, talvez para sempre, a idéia de que os fins justificam os meios na política. Essa idéia supõe a democracia como uma simples tática -portanto despreza-a no fundo.
Outra vereda importante diz respeito às empresas estatais. Não há sentido em loteá-las entre partidos políticos. É preciso deixar que floresça uma burocracia competente, impessoal. Isso, no entanto, não é panacéia.
Competentes técnicos foram cooptados pelos políticos. As denúncias sobre o desvio em Furnas indicam que, dos R$ 3 milhões mensais, quase 20%, R$ 500 mil, ficavam com diretores da empresa.
Infelizmente, minha percepção é a de que os desvios anunciados até agora são apenas a ponta do iceberg. Não é leviano afirmar que existem investigações em várias áreas -grande parte das quais ainda não emergiu. Há trabalho voltado para problemas na Petrobras, há dois fundos de pensão em crise de acerto de contas, há uma investigação sobre a verba especial do gabinete da Presidência e até esse AeroLula costuma ser citado nas conversas de bastidores.
Tudo isso depende de confirmação e é a parte mais leve do processo. Existe uma mais pesada, que diz respeito aos assassinatos dos ex-prefeitos Celso Daniel, de Santo André, e Toninho da Costa Santos, de Campinas, ambos do PT. São cadáveres no armário: impossível não exumá-los, ainda que seja para comprovar a inocência dos envolvidos.
Numa situação dessas, as explosões emocionais podem nos confortar momentaneamente, mas não ajudam no delicado processo de achar saídas para a crise: reconstituir o tecido da política, reconstituir o tecido do campo da esquerda democrática e, finalmente, reconstituir uma aliança que possa governar, decentemente, o Brasil.
O mais difícil de tudo será reconstruir um campo de esquerda. A bancada de deputados do PT jogou-se de corpo e alma na luta por uma CPI chapa-branca, tornando-se cúmplice objetiva do assalto à máquina do Estado brasileiro. A própria idéia do socialismo chega a me assustar, como assusta a Václav Havel, o ex-presidente tcheco.
Ele aceita a idéia de solidariedade, de luta pela justiça social, enfim de todos os conteúdos da expressão socialismo, mas prefere defendê-los sem o guarda-chuva desse nome, dado ao desgaste que sofreu no processo histórico de seu país.
Caminhamos para uma situação semelhante no Brasil, agora que nos desvencilhamos do passado ou, pelo menos, de uma de suas patologias políticas (os fins justificam os meios) e teremos de buscar novos caminhos.
Aqueles que acham que a corrupção de esquerda precisa de um tratamento mais sensível quase sempre são aqueles que pedem tolerância para Fidel Castro e sua repressão de esquerda. Estão enterrados no meu coração com o século 20.
Edgar Morin escreveu um pequeno livro intitulado "Para Sair do Século 20". O tema era também a interdisciplinaridade e outras observações que não cabem aqui. Mas o Brasil está em via de sair do século 20, o que terá feito quando superar essa etapa, embora ainda tenhamos nas costas algumas lições de casa do século 19 não realizadas, como o saneamento básico, uma reforma agrária diferente e tantos outros sintomas de atraso.
Mas as coisas não caminham de forma harmônica. A crise atual, por exemplo, é a primeira em que a internet desempenha papel importante. As pessoas se informam, discutem, multiplicam a mensagem dos meios convencionais. Só isso me abre o horizonte para aquele projeto do computador a US$ 100. Quando defendi a quebra do monopólio dos telefones, fui chamado de traidor por uma parte da esquerda. Mas a aliança com a ciência, sem ilusões, a aproximação com a chamada terceira cultura (cientistas que explicam o mundo como escritores), aponta para um tipo de intervenção que renda mais frutos do que ficar nesse interminável bate-boca para demonstrar que corrupção de esquerda e de direita não se diferenciam.
Nas democracias, ambas são crime.

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