Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, maio 10, 2010

A captura da constituição Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S.Paulo - 10/05/10

O País está atravessando uma onda do politicamente correto que, em
nome da justiça, está se tornando uma fonte de injustiça. Em nome da
reparação de injustiças históricas, indivíduos e grupos sociais estão
sendo vítimas de uma outra forma de injustiça. Em nome da justiça, o
arbítrio está sendo considerado legal, numa interpretação enviesada da
Constituição e das leis de nosso país. Processos de identificação e
demarcação de terras indígenas e quilombolas se situam precisamente
dentro desse contexto, com desrespeito sistemático ao princípio
constitucional do direito ao contraditório e ao direito de
propriedade, atingindo mesmo a soberania nacional.

O processo de ressemantização da palavra quilombo vem a abarcar um
amplo leque de significações, incluindo realidades tão distintas como
comunidades negras em geral e terras de preto, até bairros no entorno
dos terreiros de umbanda e de candomblé. Abarca virtualmente qualquer
centro de cultura negra em zona urbana e rural. Se assim não fosse,
boa parte dos relatórios de identificação e laudos antropológicos
daria uma resposta negativa a demandas quilombolas, pela pura e
simples inexistência de quilombos. Graças à ressemantização do termo
quilombo por meio de uma "interpretação étnica" baseada na
"autoidentificação", laudos e relatórios de identificação e demarcação
vêm a criar um quilombo lá onde este não existia. Relatórios e laudos
não reconheceriam um fato existente (quilombo), historicamente
determinado, mas criariam um fato (o quilombo inexistente, renomeado
quilombo conceitual).

A Revista Palmares ? Cultura Afro-Brasileira de março expressa bem
esse novo ponto de vista, de natureza claramente ideológica. Note-se
que a Fundação Palmares é um órgão do Ministério da Cultura,
encarregado dos primeiros estudos de identificação de áreas
quilombolas, que depois são encaminhados ao Incra, a quem cabe o
trabalho de identificação e demarcação propriamente dito, com as
desapropriações correspondentes. Cito: "Os grupos que hoje são
considerados comunidades de quilombolas se constituem a partir de uma
grande diversidade de processos, que incluem não apenas as "fugas" com
ocupação de terras livres e geralmente "isoladas" ? visão esta já
superada ?, mas as heranças, doações, recebimento de terras como
pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas
terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades
para continuarem a servir de mão de obra, bem como a compra de terras,
tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua
extinção."

Observe-se, primeiramente, o reconhecimento do quilombo histórico,
acepção corrente quando da promulgação da Constituição de 1988, à qual
se segue uma outra significação, a do quilombo conceitual. No primeiro
caso, temos um significado muito preciso, que abrange um número
restrito de casos, perfeitamente delimitado, referente, mormente, a
terras "livres", ou seja, terras públicas, a partir de um processo de
fuga e opressão. Ora, tal significação é declarada superada, como se
coubesse a uma fundação estatal, a antropólogos e promotores
simplesmente desconsiderar o texto constitucional. Isso seria o
equivalente a declarar ultrapassada a própria Constituição.

No segundo caso, temos uma ressemantização que visa a um sem-número de
casos possíveis, abrangendo, praticamente, qualquer relação social,
trabalhista ou outra em que negros estejam ou tenham estado em maior
ou menor medida envolvidos. Assim, doações de terras e heranças,
contempladas no Código Civil, vêm a ser consideradas como
"quilombolas", quando uma cadeia dominial pode perfeitamente ser
traçada conforme as diferentes responsabilidades. Da mesma maneira,
relações de trabalho, previstas na legislação trabalhista, tornam-se
também quilombolas, porque assim o quiseram aqueles que se apropriaram
da nova significação de quilombo. Compra de terras, outra transação
comercial normal, igualmente prevista em lei, torna-se, ela também,
quilombola. Os marcos temporais igualmente desaparecem. Parece não
haver limites para tal ampliação do conceito de quilombo.

O objetivo da ressemantização consiste na criação de um objeto
inexistente com vista a enquadrá-lo num artigo constitucional. Como
não haveria forma de fazê-lo na acepção corrente de quilombo, a tarefa
que se impôs um grupo de antropólogos foi a de criar um "fato
conceitual", algo artificial, não existente, com o intuito de que
viesse a ter validade jurídica. Dito de outra maneira, a
ressemantização teve como objetivo a captura da Constituição, fazendo
com que a Carta Maior passe simplesmente a responder a demandas
criadas por "movimentos sociais", que atuam como verdadeiras
organizações políticas, com braços internacionais, via apoios
financeiros, por meio de ONGs e governos, além de redes globais de
formação da opinião pública. Trata-se, portanto, de uma captura
política da Constituição.

A captura política da Constituição só é possível graças a esse
processo de ressemantização, consistente em denominar quilombo algo
que não o seja, por uma reinterpretação dita de ordem étnica. A
nomeação visa a torná-la uma categoria jurídica, administrativa, com o
verniz da colaboração antropológica, que assim lhe conferiria
legitimidade. O conhecimento antropológico torna-se um mero meio de
legitimação política, descomprometido com a verdade, a imparcialidade
e a universalidade. O conhecimento antropológico torna-se um
instrumento político, perdendo, dessa maneira, as características que
deveriam ser próprias da ciência. Ele passa a ditar o que deveria ser
o Estado, ganhando uma função propriamente normativa.

Resultado: a Fundação Cultural Palmares estimava, entre 1995 e1998, a
existência no Brasil de 24 quilombos. Hoje, graças à
"ressemantização", o número oscila entre 4 mil e 5 mil, crescendo a
cada ano.

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