Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 01, 2008

Amartya Sem *Os ricos estão mais famintos

O ESTADO DE S PAULO
A crise dos alimentos que está ameaçando as vidas de milhões de
pessoas vai abrandar-se ou se agravará com o passar do tempo? A
resposta é: ambas as coisas. A alta recente dos preços dos alimentos
foi causada em grande parte por problemas temporários, como seca na
Austrália, na Ucrânia e em outros países. Embora a necessidade de
vultosas operações de ajuda seja algo da maior urgência, a crise
profunda dos dias de hoje deve chegar ao fim.

Entretanto, subjacente a essa crise se encontra um problema
fundamental que só poderá intensificar-se, a não ser que nos
conscientizemos dele e procuremos solucioná-lo.

É a história de dois povos. Segundo uma versão da história, um país
onde os pobres são muito numerosos registra repentinamente uma
expansão econômica, mas apenas a metade da população participa dessa
nova prosperidade. Os que se beneficiam com ela gastam grande parte da
renda recém-adquirida em alimentos e, se a oferta não aumentar com
bastante rapidez, os preços poderão disparar. O restante dos pobres
agora enfrenta uma alta dos preços dos alimentos, mas não da renda, e
começa a morrer de fome. Tragédias como esta ocorrem repetidamente no
mundo.

O exemplo mais devastador é a fome no Bengala, em 1943, nos últimos
dias do governo britânico na Índia. Os pobres que viviam em centros
urbanos experimentaram um aumento acelerado da renda, principalmente
em Calcutá, onde os enormes gastos com a guerra contra o Japão
provocaram uma explosão que quadruplicou os preços dos alimentos. Os
pobres que moravam na zona rural experimentaram esses aumentos
vertiginosos dos preços com um aumento mínimo da renda.

Uma equivocada política do governo acentuou essa divisão. As
autoridades britânicas tentaram evitar o descontentamento urbano
durante a guerra, e o governo passou a adquirir alimentos nas aldeias
e a vendê-los nas cidades, a preços altamente subsidiados, numa medida
que contribuiu para uma alta ainda maior dos alimentos na zona rural.

Nas aldeias, as pessoas que ganhavam remunerações mínimas começaram a
morrer de fome. Na carestia que se seguiu, assim como na esteira dela,
morreram de 2 milhões a 3 milhões de pessoas.

Neste momento, discute-se intensamente, como não poderia deixar de
ser, a divisão entre a população afluente e a não afluente na economia
global, mas os pobres do mundo também estão divididos entre os que
registram uma elevada expansão e os que não se beneficiam dela. O
rápido crescimento econômico em países como China, Índia e Vietnã
tende a aumentar acentuadamente a demanda de alimentos. Evidentemente,
isto é excelente em si, e se esses países conseguirem reduzir a
desigualdade da divisão interna do crescimento, mesmo os que não são
beneficiados comerão muito melhor.

Mas esse crescimento também pressiona os mercados globais de alimentos
- às vezes mediante o aumento das importações, outras vezes, por meio
de restrições ou proibições das exportações, como ocorreu recentemente
em países como Índia, China, Vietnã e Argentina. Os mais
particularmente afetados foram os pobres, principalmente na África.

Há também uma versão da história dos dois povos que tem a ver com a
alta tecnologia. Produtos agrícolas como milho e soja podem ser usados
para produzir o etanol utilizado como combustível automotivo.
Portanto, os estômagos dos famintos também precisam competir com os
tanques de combustível.

Nesse caso, também influi uma equivocada política governamental. Em
2005, o Congresso americano começou a exigir que se aumentasse o uso
do etanol nos veículos. Prevendo um subsídio para a utilização desse
produto, a lei criou um florescente mercado de milho nos EUA, mas ao
mesmo tempo fez com que recursos agrícolas fossem desviados dos
alimentos para a produção do combustível, o que torna ainda mais
difícil a concorrência para os estômagos famintos.

O uso do etanol pouco contribui para evitar o aquecimento global e a
deterioração ambiental, e, se os políticos americanos permitissem,
deveriam ser implementadas com urgência reformas muito claras na
política. O uso do etanol poderia ser restringido, em vez de ser
incentivado e subsidiado.

O problema global dos alimentos não é provocado por uma tendência de
queda da produção mundial, ou da produção de alimentos per capita (o
que tem sido muitas vezes afirmado sem muitas evidências). Ele é o
resultado da aceleração da demanda. Entretanto, um problema induzido
pela demanda também exige a rápida expansão da produção de alimentos,
o que pode ser feito mediante uma maior cooperação global.

Embora se deva atribuir ao crescimento populacional apenas uma modesta
parcela da crescente demanda de alimentos, ele pode contribuir para o
aquecimento global, e, no longo prazo, as mudanças climáticas podem
ameaçar a agricultura. Felizmente, o crescimento populacional já está
diminuindo, e existem provas esmagadoras de que o aumento do número de
mulheres capacitadas para exercer funções de responsabilidade (bem
como a ampliação da educação para as jovens) poderá rapidamente
reduzi-lo ainda mais.

O problema maior é elaborar políticas eficientes para tratar das
conseqüências de uma expansão extremamente assimétrica da economia
global. Há uma crucial necessidade de reformas nacionais no âmbito da
economia em muitos países que apresentam um lento crescimento, mas há
também uma grande necessidade de uma maior cooperação e assistência
globais. A primeira tarefa consiste em compreender a natureza do
problema.

*Amartya Sem, que leciona economia e filosofia em Harvard, recebeu o
Prêmio Nobel de Economia em 1998. Mais recentemente, escreveu
"Identity and Violence: The Ilusion of Destiny". Ele escreveu este
artigo para o ?The New York Times

Arquivo do blog