Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 12, 2007

Três revoluções e Bento XVI

Mateus Soares de Azevedo

Nos séculos que se seguiram à crucifixão, o cristianismo foi gradualmente se estabelecendo como religião universal. Alcançou seu apogeu no que hoje chamamos Idade Média. Nessa época, floresceram confrarias espirituais como a franciscana e a dominicana; escolas de pensamento como a tomista (aristotélica) e a eckhartiana (platônica); movimentos artísticos como o românico e o gótico; sábios e santos como Francisco de Assis, Catarina de Siena e Dante, sem falar dos hospitais, universidades e asilos criados pela Igreja.

Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o Renascimento (século 15), a segunda, o Iluminismo (século 18) e a terceira, o Vaticano 2º (século 20).

A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento do divino rumo ao humanismo. O Iluminismo foi uma continuação disso, de uma maneira mais marcada e explícita. O Vaticano 2º foi a derradeira dessas revoluções, virando pelo avesso as principais crenças e práticas do catolicismo - foi decisivo para consolidar as duas revoluções anteriores.

Bento XVI, assim como seu antecessor João Paulo II, estão inseridos nesse processo. Além de seus aspectos gerais, compartilhados por ambos, o primeiro herdou em particular do segundo dois grandes desafios. Por um lado, fazer frente à desespiritualização das sociedades contemporâneas, agudizada, não por acaso, desde o concílio. Por outro, enfrentar as agudas divisões internas do catolicismo moderno.

Paradoxalmente, a despeito de seus quase 27 anos de pontificado e de viagens apostólicas a 130 nações, nos cinco continentes, Karol Woitila não foi capaz de pôr um fim à trágica crise que se abateu sobre a Igreja desde os anos 1960. De fato, milhares de padres abandonaram o sacerdócio. As vocações escasseiam tanto entre o clero secular como entre as ordens religiosas. Apenas nos EUA, dos 49 mil seminaristas de 1965 restaram hoje 4.700. Por todo o mundo, seminários, escolas e conventos foram fechados. A freqüência à missa caiu para menos de 20%, quando era de 75% em 1960. No Brasil, “o maior país católico do mundo”, a Igreja perde mais de meio milhão de fiéis ao ano. O último censo do IBGE diz que, de 1960 para cá, o número de católicos caiu de 90% da população para 73%. No mesmo período, o número de ateus e agnósticos mais que decuplicou, de 0,5% para 7,4%. Na Europa Ocidental, metade dos recém-nascidos não é mais batizada na Igreja.

Vale assinalar, em contraste, que as igrejas orientais, que não seguiram o aggiornamento, vivem um bom momento. E até recebem muitos católicos em suas fileiras, chamados de “refugiados do Vaticano 2º”! “Pelos frutos se conhece a árvore”, diz o Evangelho.

Além dessa enorme perda herdada por Bento XVI, ele tem de se confrontar com dissensões internas. Hoje, não basta se dizer “católico” para ser identificado, é preciso um rótulo adicional: carismático ou focolari, adepto da Teologia da Libertação ou da TFP, do Opus Dei ou da Comunhão e Libertação, integrista ou Arauto do Evangelho... Não deixa de ser paradoxal a nova Igreja se engajar no diálogo ecumênico com as demais religiões e buscar a unidade com os “irmãos cristãos”, quando os próprios católicos se distanciam uns dos outros. De fato, não há muito em comum entre os grupos listados acima.

Este, portanto, o segundo desafio de um Ratzinger ainda mal conhecido, mas cujo ideário pode ser entendido prestando atenção às suas próprias palavras. Nos anos 1950, sua tese de habilitação ao seminário na Alemanha foi recusada por “falta de rigor teológico”, suspeita de “heterodoxia neomodernista” e por “subjetivizar o conceito de Revelação”. Na autobiografia La Mia Vita, criticou a principal escola teológica católica, a tomista, como “fechada em si mesma, impessoal e pré-fabricada”.

No livro Princípios de Teologia Católica, elogia “o impulso dado por Teilhard de Chardin”, cuja “ousada visão incorporou o movimento histórico do cristianismo ao processo cósmico da evolução”. Na mesma obra, escreveu que “a Verdade se torna função do tempo... Fidelidade à verdade de ontem consiste em abandoná-la e assumi-la na verdade de hoje”. Na missa Pro eligendo pontífice, contudo, rezada por ele um dia antes de ser eleito pelos cardeais, descreveu a “ditadura do relativismo” como “o problema central da fé hoje”. O problema é que o cerne do relativismo é justamente a idéia de que nada é definitivo e que a verdade depende da história ou da classe social. A este respeito, Aristóteles afirmou: “Aqueles que declaram que tudo, inclusive a verdade, segue um fluxo constante se contradizem, pois, se tudo muda, sobre qual base podem formular uma afirmação válida?”

Em palestra no convento de Santa Escolástica, na Itália, em 1º de abril de 2005, sustentou que “o Iluminismo é de origem cristã e não é acidente que tenha nascido no âmbito da fé... é um mérito do Iluminismo ter proposto novamente os valores originais do cristianismo. ... O concílio Vaticano 2º enfatizou mais uma vez esta profunda correspondência entre cristianismo e Iluminismo”.

O paradoxal nesta tentativa de apropriação, pelo chefe da nova Igreja, da “glória do Iluminismo” é que este se destacou, como é bem sabido, por um marcado sentimento anti-religioso. Um dos “papas” do Iluminismo, o francês Denis Diderot (1713-1784), editor-chefe da célebre Enciclopédia, acalentava a idéia de “enforcar o último Rei nas tripas do último papa”.

Oxalá a “correspondência profunda” não chegue a tanto. E a advertência do profeta Oséias (4,6) não seja esquecida: “O desprezo do conhecimento leva à ruína do povo.”

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