Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 06, 2007

A 'judiciocracia' ameaça? Gaudêncio Torquato


Já não se faz política como antigamente. A observação é a propósito da nova abordagem em que se insere a política brasileira que, há um bom tempo, presta exame de qualidade no vestibular das cortes judiciais e, após aprovação de juízes, entra com um pé mais baixo no tripé dos Poderes arquitetado por Montesquieu, em 1748. De jogo de convencimento e compromisso, a política ganha foro de objeto de contestação, dando origem à 'judiciocracia', neologismo para designar uma democracia feita sob obra e graça do Poder Judiciário. Vale lembrar, porém, que a tendência de maior participação dos tribunais em ações legislativas e executivas decorre da própria 'judicialização' das relações sociais, fenômeno que se expressa de maneira intensa tanto em democracias incipientes quanto em modelos consolidados, como os europeus e o norte-americano, nos quais os mais variados temas envolvendo políticos batem nas portas do Judiciário.

A nova arquitetura da política nacional pode ser vista sob a perspectiva do contencioso que locupleta as estantes judiciais. O Poder Executivo inunda canais da Justiça para ampliar e garantir suas decisões. O Legislativo instaura copiosa agenda de Comissões de Inquérito, ampliando frentes de luta política, principalmente contra o Executivo. O Ministério Público flagra ilícitos de toda ordem, encaminhando farta pauta de conflitos ao Judiciário, na convicção de que a sociedade brasileira é 'hipossuficiente' e, portanto, carece de braços mais longos de defesa. Minorias políticas recorrem às Cortes para fazer valer direitos. Associações civis e esferas governativas produzem uma montanha de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). Quase 3.900 ADINs aportaram no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1998. Até aí tudo bem. A questão é: esse novo modo de fazer política melhora a qualidade da democracia? Ou confere excessivo poder aos Tribunais, resultando em desmesurada intervenção nos conflitos políticos?

A resposta implica entender as interações entre os agentes sociais, políticos e judiciais nas várias instâncias de decisão. O fio que conduz ao novelo da política judicializada é a interpretação de direitos já institucionalizados. Ou seja, não se trata mais de definir o direito de cada indivíduo, mas de interpretar e mensurar seus limites. No princípio do Estado moderno, o Judiciário era mero executor de leis. Montesquieu ponderava que juízes significavam a boca que pronuncia as palavras da lei, entes que não podem aumentar ou enfraquecer seu vigor. O tripé dos Poderes alinhava-se numa reta, embora o Legislativo ainda tivesse maior projeção. Com o advento do Welfare State, o Executivo passou a intervir de maneira forte para expandir a rede de proteção social. Passou, inclusive, a legislar, fato hoje medido entre nós pelas medidas provisórias. Ganhou proeminência entre os Poderes. O atual ciclo confere mais força ao Judiciário pelo fato de ser este intérprete final da letra constitucional. Ao decidir se os Poderes Executivo e Legislativo, partidos e outras instâncias agem de acordo com a Constituição, o STF acaba definindo a política que regra a vida nacional, elevando o Judiciário a um patamar superior.

A passagem da política pelos túneis judiciários se tornou mais intensa, a partir de 88, quando a 'Constituição Cidadã' escancarou o portão das demandas de classes e grupos. Os textos legais, por seu lado, férteis em ambigüidade, propiciaram condições para a instalação de um processo de juridificação da vida social. Disputas multiplicaram-se nas esferas pública e privada. A visibilidade dos tribunais se intensificou e seus membros passaram a dar uma interpretação política aos conflitos sociais. Hoje, nomeações de juízes assumem forte coloração política. Ao lado de alta cultura jurídica, magistrados passam também a ser conhecidos como ministros nomeados por Sarney, Collor, Fernando Henrique e Lula (aliás, também é assim nos EUA). O Ministério Público (MP) desenvolve forte ativismo. Promotores e procuradores de Justiça abrem espaço para um formidável arsenal de ações civis públicas, reforçando a idéia de que o MP é o quarto Poder. Órgãos governamentais usam-no para acionar outros órgãos públicos. O contencioso político-jurídico se adensa. Instâncias políticas e jurídicas convivem, ora pacifica, ora conflituosamente. Tensões acendem as fogueiras de crises intermitentes.

Nesse ponto, afloram críticas. Ao interferir fortemente na política, o Judiciário estaria desenvolvendo uma hegemonia dentro do arranjo político-institucional. Posta nesses termos, a inquietação leva em conta, ainda, o processo de nomeação 'política' de juízes das altas Cortes, o voluntarismo político e a orientação ideológica de membros do MP que buscam afirmar o caráter politizado da instituição, o ativismo político que se observa até em quadros de juízes de primeira instância e certa propensão para jogar na panela da racionalidade do Direito condimentos extraídos de circunstâncias e de valorações pessoais, o que poderia ameaçar os fundamentos do império legal. O fato é que a intervenção jurídica no campo político não pode passar despercebida. Ocorre que o Legislativo dá mostras de fragilidade. O que faz é questionado e o que deixa de fazer é corrigido por outras áreas. Já o Executivo se apresenta como fonte inesgotável do caudal da política judicializada, contribuindo para que o Poder que diz a lei seja o mesmo a dizer como deve funcionar a política. Quando juízes se tornam agentes políticos da lei, periga a doutrina da tripartição dos Poderes.

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