ponto de vista
'O Bolsa-Família o leva à vitória outra vez e bem que ele
pode tornar-se mesmo imperador'
'Sua Majestade Inácio Lula I, II, III, IV e V, o maior
do mundo desde Nabucodonosor'
João Ubaldo Ribeiro
O presidente da República, que encarna uma perigosíssima combinação de inteligência, esperteza e ignorância, ruim para ele e péssima para nós, disse outro dia que chegar à Presidência é 'o ápice do ser humano'. E acrescentou: 'Não tem nada além disso.' Por boa vontade, atribuo a afirmação à incultura e não à pobreza de espírito e valores de quem, aparentemente, se julga à altura, ou mais, de Péricles, Aristóteles, São Jerônimo, Galileu, Santo Inácio de Loiola, Isaac Newton, Churchill e muitos outros de tope semelhante. Só assim posso entender que ele ache que chegou ao ápice dessa categoria que, depois de sua dele inclusão, me parece, não sei por que, um pouco deslustrada. Isso, porém, será, talvez, advindo de preconceito e erro de julgamento. Pode ser que realmente o presidente venha a entrar na História no pedestal de quem, como os pais da pátria americanos, concebeu e pôs em prática um novo Estado, diferente de qualquer outro jamais imaginado ou implantado.
Talvez hoje em dia, quando me dizem que as faculdades de Direito formam técnicos em advocacia e não juristas, nem mais nelas se estude a disciplina Teoria Geral do Estado, que, no meu tempo, a gente pegava logo no primeiro ano. Mas quem não saiu da escola analfabeto lembra-se de pelo menos alguns modelitos de Estado. Há ('há', não; quero estar na moda e falar como todo mundo pegou do presidente e do seu ex-oponente Alckmin, que mostraram que o certo agora é o que todo mundo já fala: 'você tem'), ou seja, você tem, por exemplo, o Estado do bem-estar social, dos quais o caso logo recordado é a Suécia. Nele o cidadão paga quase tudo o que ganha de impostos, mas o Estado também lhe dá quase tudo e todos vivem bem. E você tem do outro lado o Estado gendarme, o liberal clássico, que exerce funções básicas, como a segurança e outros serviços essenciais, e deixa o resto a cargo do jogo natural de interesses do indivíduo ou de grupos de indivíduos associados, em nossos dias o popular e nervosíssimo mercado. Você tem, enfim (agora o necessário gerúndio, para ficar logo de vez na moda) de estar fazendo um pequeno esforço para estar lembrando os tipos de Estado, como o totalitário com xilocaína que muitos americanos desejam acabar de instituir por lá, ou o totalitário tipo você-é-para-mim-e-eu-não-sou-para-você, como o nazi-fascismo.
Antes de pensar no assunto, eu acreditava que classificar o nosso era moleza. Mas de pensar, como se sabe, morreu um burro e quase tal me aconteceu. Seria o nosso totalitário por meter o bedelho em tudo, desde nos forçar a votar para legitimar um governo que só se respeita por conveniência ou quando não se tem a posição sócio-econômico-política necessária, a nos ensinar como falar a nossa própria língua (sei que algo mente muito, mas algo sempre me diz que algum burocrata do governo, cansado de não ter o que fazer, guarda na gaveta uma cartilhinha de como nos devemos comportar sexualmente e alimenta a esperança de um dia implantá-la, com fiscais de transa e tudo)? Seremos uma cleptocracia ('clepto', em grego quer dizer 'furtar') aparentemente desordenada, mas muito bem estruturada e inculcada na nossa cultura?
Não, não, somos bem mais complexos. É verdade que nossa subserviência coletiva e individual, nosso puxa-saquismo atávico, já carregado há séculos, pois, ao contrário do que ocorre em Biologia, na sociedade os caracteres adquiridos são herdados, além do fato humilhante de que nos (des)governam por Medidas Provisórias e por uma burocracia diabólica, nos aproxima do totalitarismo. E é também verdade que a convicção geral é de que se rouba e se frauda em todas as áreas de atividade no Brasil, desde a churrascaria de estrada que, precisando dar notas fiscais para maquilar com verossimilhança seus lucros, pergunta qual o valor que o cliente quer que se dê à nota, para esse cliente tungar a empresa para a qual está a serviço, a membros graduados dos três poderes, cujos nomes não cito agora porque quem acaba indo em cana sou eu e tenho família para sustentar.
É, podemos ser um pouco de tudo isso, mas nossa originalidade se afirma, para mim com clareza cada vez maior. Somos um híbrido ainda não inteiramente sedimentado. Mas há (quer dizer, 'você tem' - ainda aprendo o falar moderno), mas você tem, dizia eu, visivelmente um Estado úbere, onde mamam bacorinhos selecionados, cada um com um bocão maior que o outro. Você tem um Estado saco-sem-fundo, para o qual contribuem os que pagam impostos, nos quais, ao contrário do que pensa, não estão incluídos os barões, pois que barão não paga imposto, repassa. Também ao contrário do que se julga, os que recebem bolsa-família e outras caridades somente pensam que mamam, porque estão pagando (agora acertei um gerundismo razoável, ainda fico bom nisso) impostos em tudo o que compram e o resto é pago não pelos barões, mas por eles mesmos, notadamente quando tomam uma cachacinha ou pitam um cigarrinho, embora também paguem para comprar qualquer coisa. Não há praticamente transferência de renda alguma, exceto a tirada da classe média, que, ao que tudo indica, no ver de alguns compositores, jornalistas e palpiteiros gerais, devia ser toda fuzilada, ou condenada a trabalhos forçados ou a dar tudo logo ao governo e ir para a classe dos pseudomamantes. É esse o Estado que somos, o Estado úbere e o Estado esmoler. E, como aconteceu com a CPMF, o Bolsa-Família será eterno. E, mais ainda, se quem o criou anunciar que seu sucessor vai acabar com ele, haverá quase certa sublevação, talvez seguida de uma solução de emergência, para superar a crise. Uma solução plebiscitária, com a pergunta sobre se queremos mais uns dez anos do mesmo presidente. O Bolsa-Família o leva à vitória outra vez e bem que ele pode tornar-se mesmo imperador, Sua Majestade Inácio Lula I, II, III, IV e V, o maior imperador do mundo desde Nabucodonosor da Caledônia.