Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 06, 2007

Daniel Piza

Tomando ciência

sinopse

'Recolher os exemplares do livro de Paulo César de Araújo sobre Roberto Carlos é ato de censura'


'São Paulo precisa e pode ter em breve um Museu de História
Natural ou Museu de Ciências'

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Daniel Piza, daniel.piza@grupoestado.com.br

Não é de hoje que acho que São Paulo precisa ter um Museu de História Natural ou Museu de Ciências. Há algum tempo visitei o Museu de Zoologia da USP, no Ipiranga, e defendi essa idéia. Existem acervos e público para tanto e, acima de tudo, existe a necessidade de divulgar e promover as ciências naturais no Brasil, onde só se pensa em criar museus de arte ou etnologia. Agora, visitando a excelente exposição sobre Darwin no Masp, vinda do Museu de História Natural de Nova York, descubro que o responsável pela iniciativa, Ben Sangari, do Instituto Sangari, já batalha pela realização disso que chama de seu 'maior sonho'. Diz que o museu custaria R$ 150 milhões e é viável, pois sabe do interesse tanto da iniciativa privada quanto do poder público. A julgar pela atenção despertada pela exposição, não há dúvida de que se trata 'apenas' (no Brasil não dá para prescindir dessas aspas) de fazer bem-feito.

* A exposição me remeteu para a adolescência, quando ler Darwin, Thomas Huxley e Stephen Jay Gould, além de ver os documentários de Jacques Cousteau, era um dos meus maiores prazeres. A mente de Darwin é especial. Mais do que explicar de maneira muito didática e ágil a Teoria da Evolução, a exposição trata disso - de um gênio que se distinguiu pelo pensamento multidisciplinar e imaginativo, em que intuição, indução e dedução se unem. Sua viagem pelo Beagle não foi apenas um aprendizado de observação e coleta, mas também a confluência de suas leituras - muitas delas feitas ali, na biblioteca do navio - com a percepção de fatos inexplicados da natureza. A geologia de Lyell, a economia de Malthus, a botânica de Humboldt e a poesia de Milton eram, entre outros, os interesses que convergiam em sua mente, permitindo a tradução de análises em conceitos. A liberdade intelectual de Darwin assustou até a ele mesmo, que levou 20 anos para levar sua revolução conceitual a público.

* Um dos problemas no entendimento de Darwin é o termo 'evolução'. Dá a entender que é um processo de melhora e, portanto, como os social-darwinistas interpretaram, que a espécie humana está no topo dessa escala - e que os espécimes que se destacam na estrutura social são biologicamente mais aptos. Darwin, apesar de algumas passagens de A Descendência do Homem, nunca pensou assim. (Não é incomum essa má apropriação de teorias científicas por reduções culturais. A Relatividade de Einstein virou pretexto para muito niilismo antropológico, assim como hoje a física quântica é banalizada em livros de auto-ajuda.) Como diz o reverendo Adam Sedgwick em carta para ele, num dos fascinantes manuscritos da exposição, a 'ligação entre matéria e moral' foi quebrada. O que Darwin mostrou foi que as espécies têm ancestralidade comum e se diferenciam ao longo do tempo por 'transmutações' - termo que usava em vez de evolução -, mais tarde comprovadas pela genética. Ou seja, que a vida na Terra não tem todas suas manifestações predeterminadas por um ser divino. Isso é diferente de dizer que não existe tal ser divino. Mas os criacionistas odiaram essa verificação empírica da história natural. Apenas não têm outra a oferecer - seu argumento é de fé e apenas como tal deve ser respeitado.

* Infelizmente no Brasil temos um analfabetismo científico muito grande, gerador de preconceitos como os de que cientistas são arrogantes e querem brincar de Deus, como se ouve nas telenovelas. (Ou então, no pólo oposto, de uma visão romântica da ciência, como a de considerar que a descoberta de um planeta com temperatura semelhante à da Terra aponte para a existência de vida extraterrestre. Não se sabe nem se ele tem água!) O ex-procurador Celso de Mello pode dizer que em sua opinião a vida humana começa na fecundação. Mas não pode dizer que os cientistas chegaram a essa conclusão. Há muita divergência - ainda que a maioria considere o início da vida neuronal, 12 semanas depois da fecundação, um marco razoável - e certamente Darwin teria suas dúvidas. O que não se pode é condicionar a pesquisa com células-tronco embrionárias a uma definição cabal da 'origem da vida'. Trata-se de grupos celulares que foram fertilizados 'in vitro' e que não se destinavam a úteros, sem os quais não se transformam em seres vivos. Se um zigoto tem vida 'potencial', óvulo e espermatozóide que o geraram também têm. E milhões de vidas potenciais se perdem por dia, das mais variadas formas...

* Debates generalistas à parte, o Brasil é muito atrasado em pesquisa científica e tecnológica. Com essa mania de lançar um PAC para cada setor, o governo andou prometendo R$ 10 bilhões para ele. Sabe quanto a China investe por ano? Nada menos que US$ 136 bilhões... E o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, por exemplo, está chamando a atenção para os projetos europeus e americanos de 'tecnologias convergentes', uma fusão de nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e neurociência que é o campo mais promissor de um futuro bastante breve. Genética e computação estão transformando o conhecimento e o modo de vida, criando terapias, teorias e produtos inovadores. Sujeitos mais criativos e cooperativos são necessários, o que implica transformar agudamente a educação corrente, rifada entre disciplinas e baseada em memorizações. A 'terceira cultura', que aproxima ciências e humanismo, está na pauta do dia; Darwin é o grande modelo intelectual para essa geração. Mas o debate no Brasil mal começou.

* Outro problema grave do Brasil é a carência de divulgação. Os próprios cientistas vêem a divulgação como função menor ou dispensável de suas posições como intelectuais públicos. Poucos escrevem, e quase sempre mal. Desde Darwin, porém, a melhor parte da literatura e do jornalismo científicos tem sido feita pelos cientistas, muitos dos quais escrevem muito bem. No próprio ato de explicar suas pesquisas, eles as aprimoram. No Brasil, os pesquisadores preferem esconder o que estão pensando. Pense em John Gribbin, físico e escritor, autor do monumental Science e, agora, da melhor introdução possível à cosmologia moderna, The Universe - A Biography (editora Allen Lane), que também explica muito bem a física de partículas. Biografias, por sinal, são sempre um bom caminho - como a mais nova de Einstein, por Walter Isaacson, que acabo de receber e é uma prova de que sempre há o que acrescentar sobre o autor de uma obra de gênio.

* Num especial recente da revista eletrônica Slate sobre o cérebro (site), com muito do que se vem descobrindo sobre o processo mental graças a tecnologias de imagem por ressonância magnética, por exemplo, Oliver Sacks explicou o que esse aprendizado mudou em sua vida: 'A música é representada e estimula muitas partes do cérebro. Mais e mais, uso música para mim mesmo: para me manter ativo, para mudar meu humor, para estimular minha imaginação. E uso para ajudar pacientes que têm mal de Alzheimer ou Parkinson, afasia, autismo e muitas outras condições. A música tem grande poder terapêutico - e sem efeitos colaterais.' Que tipo de música será que Darwin apreciava?

UMA LÁGRIMA

Por falar em música, o grande Rostropovitch morreu, na sexta retrasada. Ele fica em CDs, DVDs, em filmes no You Tube e, sobretudo, na memória de quem o escutou ao vivo, porque a música se faz assim, na hora, na suspensão de uma platéia pela arte, pela técnica e temperamento de um musicista. Ele tirava do cello, como poucos na história, essa sensação característica de profundidade e prazer, de gravidade e lirismo. Ao menos ele morreu depois de celebrado em praça pública, numa manifestação que acreditávamos apenas reservada a celebridades do cinema, da TV, do pop... Spaziba. Obrigado.

RODAPÉ

É fascinante Istambul, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras), o escritor turco, cujo romance Neve continua espantosamente na lista dos mais vendidos no Brasil. Istambul é um livro de memórias, que sobrepõe sua história pessoal à de sua cidade, e pelo poder de sua escrita é comparável com De Amor e Trevas, livro de memórias de outro grande escritor, Amós Oz, e sua infância e juventude em Jerusalém. Pamuk mostra os conflitos, muitas vezes tácitos, em sua cidade pós-imperial, do ponto de vista de sua formação 'ocidentalizada'. Não tem pudor, como deve ser nas autobiografias, e ao mesmo tempo faz um ensaio sobre viver à beira da água, na fronteira entre Europa e Ásia, no hiato entre passado e moderno.

POR QUE NÃO ME UFANO

Se Roberto Carlos se sente difamado por revelações ou falsas revelações sobre seus casos amorosos, que entre com uma ação e ela seja julgada e, se for o caso, que haja retratação e/ou erratas em futuras edições. Mas recolher os exemplares do livro de Paulo César de Araújo - que é cheio de informações e argumentos sólidos e até exagera em sua exaltação do 'rei' - é um ato de censura, um atentado à liberdade de expressão. Não é coisa de país sério.

INTÉ

Saio em férias hoje. Esta coluna volta no dia 3/6.

Aforismos sem juízo

O ser humano é a única espécie que ouve uma voz dentro de si o tempo todo. É um rádio que vê e anda.

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