O novo presidente da França ganhou as eleições sem
esconder que é de direita. Falta agora endireitar o país
Antonio Ribeiro, de Paris
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Célebres por revoluções, os franceses forjaram no último quarto de século a imagem de povo avesso a reformas em um país de economia morosa. Eles acabam de virar mais uma página de sua longa história. Na mais velha democracia da Europa continental, onde o voto não é obrigatório e a abstenção nas eleições se tornou símbolo da descrença nos políticos, quase nove entre dez eleitores foram às urnas eleger seu novo presidente. A escolha emergiu da disputa entre duas vertentes cuja denominação nasceu quando parlamentares franceses escolheram de que lado iriam sentar-se na Assembléia Nacional: a esquerda e a direita. O presidente, eleito com um número de votos superior ao de qualquer outro postulante desde 1965, quando o sufrágio universal direto se tornou o modo de escrutínio – o que lhe confere legitimidade inédita –, é Nicolas Sarkozy.
Descendente de aristocrata húngaro e criado pela família materna de origem turca sefardita, ele foi florista e sorveteiro para pagar a faculdade de direito, não o celeiro da classe política, a Escola Nacional de Administração (ENA). Pela personalidade e ação, Sarkozy lembra um extraterrestre na política francesa. Venceu as eleições no único país onde a legislação limita a jornada de trabalho a 35 horas semanais com o bordão: trabalhar mais para ganhar mais. Mas, sobretudo, o triunfo deriva da total falta de complexo e do gosto com que Sarkozy defendeu seu ideário. É uma temeridade se dizer de direita, em público, na França – ainda que, desde a queda do Muro de Berlim, esteja claro que representa o mais positivo pensamento político ocidental e a via econômica eficiente para a criação de riquezas.
Para quem esteve alheio – e mesmo para muitos franceses – ao processo que desencadeou o resultado do pleito, a pergunta natural foi: quem é Nicolas Sarkozy? Própria da natureza humana, a reação ao desconhecido é a abordagem pelo apoio das referências e, como escreveu Machado de Assis sobre o Senado de 1860, as "visões valem o mesmo que a retina em que se operam". Os adversários pintaram o retrato de Sarkozy com tintas sombrias: fascista, racista, agente do capital, estrangeiro, húngaro, judeu, cão de George W. Bush, psicopata, brutal e, como resumiu sua concorrente, a socialista Ségolène Royal, em tentativa desesperada de mudar os rumos da eleição na última hora, "um perigo para a França".
O processo de demonização da campanha eleitoral começa a encontrar ressonância tardia fora da França, nos bolsões da esquerda radical. Os franceses já acabaram com ele pelo voto. Os mais otimistas querem ver na figura apequenada – 1,68 metro – de Sarkozy um Tony Blair francês, Margaret Thatcher de calças, um renascentista econômico como Ronald Reagan, enfim um reformador liberal que vai transformar um país orgulhoso da histórica vocação de nação-modelo, mas refratário à idéia de se parecer com qualquer parte do mundo.
Jacques Attali, eminência parda do falecido presidente socialista François Mitterrand, lembra o dia em que chegou ao Palácio do Elysée e foi informado do telefonema de um tal Sarkozy: "Ele se apresentou como jovem advogado, gaullista, apaixonado por política, que desejava ser presidente da República e encontrar-se comigo". Attali, conselheiro de notória inteligência e erudição, íntimo das engrenagens e dos entraves do poder, não menos curioso, acolheu Sarkozy no palácio onde a partir de 17 de maio o novo presidente da França vai fixar residência e comandar a sexta economia do mundo. Desde então, os dois se tornaram amigos. Attali diz: "Eu apreciei o personagem volúvel, despretensioso, aberto e, acima de tudo, capaz de franquezas desconcertantes".
Sarkozy conheceu o topo da colina e a travessia do deserto: esteve à frente do poderoso Ministério do Interior e, antes, amargou a solidão imposta pelos seus aliados quando escolheu apoiar a candidatura à Presidência de Eduard Balladur contra Jacques Chirac. "Eu o vi confrontar crises pessoais com nobreza, refletir muito sobre questões como justiça e segurança pública, improvisar em tantas outras como a economia e as relações internacionais", diz Attali.
Nicolas Sarkozy, que veste elegantes ternos escuros Christian Dior – a versão moderna das armaduras dos cavaleiros medievais –, é herdeiro da mais antiga família política da direita francesa: o bonapartismo. A ordem, a autoridade, o mérito, a iniciativa, a disciplina, o patriotismo, a identidade francesa e a crença de que a modernização da sociedade e da economia passa pela energia e pela audácia do homem providencial. Essa corrente não vê nenhuma incompatibilidade entre o povo e a direita nem cumplicidade natural entre ele e a esquerda. A direita de Sarkozy não tem parentesco com o regime de Vichy, colaborador do ocupante nazista nos anos 40. Ela é, sim, gaullista. O movimento pendular entre o dirigismo e o liberalismo, a industrialização e a compaixão social, o livre-comércio e o protecionismo encontra pontos de contato mas não tem sincronia com os conservadores britânicos, os republicanos americanos ou os social-democratas alemães.
Apenas um ano mais velho que Sarkozy, o primeiro-ministro britânico Tony Blair, 54, anunciou sua renúncia para 27 de junho e o legado de uma década. "Só um governo desde 1945 pode dizer o seguinte: mais trabalho. Menos desemprego. Melhor saúde pública e resultados na educação. Criminalidade baixa e crescimento econômico a cada quarto de ano. Este governo é o nosso", disse Blair. Agora chegou a vez de Sarkozy converter seu discurso, já diferente no tom, em substância. A julgar pela sua disposição inicial, o tamanho da empreitada e a resistência habitual, os franceses podem apertar os cintos – vem turbulência por aí.