Haja coincidência. Ao celebrar a vitória para a presidência da França, Nicolas Sarkozy desfilou um fraseado de cores semelhantes ao que usou Luiz Inácio Lula da Silva por ocasião da posse no primeiro mandato, em 1º de janeiro de 2003. Para tirar a economia da estagnação, que, ao longo de 25 anos, deslocou a renda per capita da 7ª para a 17ª posição mundial, e combater o desemprego, que coloca a França como o 22º entre os 25 países da União Européia, o presidente eleito empunhou a bandeira da “mudança”. Lula usou o mesmo termo no discurso da primeira posse, quando disse que a sociedade decidiu “trilhar novos caminhos”. Com emoção, Sarkozy calibrou na ênfase aos valores que irá perseguir como direitista assumido: o trabalho, a honra, a Pátria, a educação, a autoridade e a família. Também, com emoção, Luiz Inácio descreveu as mazelas que iria enfrentar como homem de esquerda: “... estagnação, desemprego e fome, cultura do individualismo, egoísmo, indiferença perante o próximo, desintegração das famílias e das comunidades...” No filtro dos significados dos discursos de ambos, direita e esquerda se dão as mãos no pátio da real politik, deixando turva a clivagem expressa por seus rótulos.
A eleição francesa exibe lições úteis. A primeira é a de que as forças da direita e da esquerda, que competem entre si desde a Revolução de 1789, aproximam seus ideários a cada eleição. Nesta última, mesmo se identificando como porta-voz de um modelo exageradamente protecionista e mais gastador, a socialista Ségolène Royal procurou se afastar do radicalismo e interpretar o conceito de um socialismo menos ortodoxo e mais contemporâneo. Integrando-se ao espírito do tempo, prometeu aumentar emprego e estancar a dívida pública equivalente a 66% do PIB, tese central para os liberais. Sarkozy, por sua vez, identificado com o liberalismo anglo-saxão, defendeu um Estado “forte e protetor”, denotando propensão intervencionista, sem prejuízo das reformas econômica e trabalhista. Pareciam sinceramente distantes das extremidades ideológicas e unidos no compromisso de tirar a França do ponto morto que ocupa há décadas.
E, assim, sob uma peroração plena de bom senso, a Pátria dos Direitos Humanos assinalou o estreitamento entre esquerda e direita, limites que criou há 218 anos. Um parênteses para lembrar que a esquerda sempre foi associada à idéia de avanço social, por espelhar idéias de liberdade e igualdade, enquanto a direita ganhou o estigma de arquipélago de retrógrados, acusada de abrigar adeptos da opressão e cultores do liberalismo. A queda do Muro de Berlim redimensionou as fronteiras ideológicas, corroendo o socialismo clássico e reforçando o espaço da social-democracia. Nos fluxos e contrafluxos da contemporaneidade, os partidos de esquerda inventaram adereços para resgatar a atenção da sociedade, como as expressões “democracia direta”, “democracia participativa”, “orçamento participativo”. Nesse mosaico, o último pleito francês foi um marco. A realidade dura e crua do estado da Nação fez os contendores tirarem a máscara. Sarkozy não teve vergonha de se proclamar direitista. E Royal teve a coragem de se posicionar como esquerdista pragmática.
Fecha-se, aqui, o parênteses, para adentrarmos o território brasileiro, onde, há um bom tempo, esquerda e direita vegetam no capim do passado. Vejamos. A esquerda se apresenta, hoje, como o lado da salvação, enquanto a direita é o espaço da perdição, por ser identificada como parceira da ditadura, do imperialismo, do liberalismo e do conservadorismo. Já o meio social-democrata mais parece a casa-de-mãe-joana, que a todos acomoda. Os limites dos campos ganharam nitidez, a partir da década de 80. A era Sarney, de transição, abriu a locução. Depois veio Collor com imagem à direita, suavizada com ligeira tinta de modernidade, mas a corrupção acabou enterrando seu ciclo. Com boa vontade, diz-se que Itamar era de centro-esquerda. Fernando Henrique começou na esquerda da social-democracia, foi passando para o meio, onde o tucanato fez gols com a moeda estável, e saiu do governo, após 8 anos, com a pecha de direitista por ter semeado a floresta neoliberal. E aí apareceu Lula, ícone das esquerdas, vendendo a mudança contra a estagnação, a mesma promessa da direita de Sarkozy. Isso mesmo. Hoje, no Planalto Central, a gigantesca máquina econômica é movida pelo combustível neoliberal, enquanto o governo diz realizar o maior programa socialista do mundo.
A dissonância se explica. A rede social, costurada com os fios longos do Estado protecionista, e voltada para ajudar financeiramente 11 milhões de famílias, estaria na esquerda. Da mesma forma, a moldura do trabalho, intocável. Não se pode, nem de leve, mexer no legado de Getúlio Vargas, o pai da CLT, pois o ministro Carlos Lupi, cultor do velho ditador, diz que reforma trabalhista ou sindical é coisa da direita. Contenta-se com o nosso desemprego, praticamente o mesmo da França, em torno de 10%. Esse é o socialismo praticado pelo governo Lula. Que vai mais longe. O MST, uma daquelas extensões da democracia participativa, promove destruições e as debita na conta do “neoliberalismo”. Para acender a chama socialista, o governo enche os cofres do MST com verbas “neoliberais”. E as Centrais Sindicais? De cofres cheios, fecham a cara para as reformas. Devem zombar dos sindicatos franceses, que contam apenas com 8% de associados do total dos trabalhadores. E o que diz a direita de tudo isso? Nada, até porque nenhum político tupiniquim se considera direitista. E o que falam os “meiotas” da social-democracia? Tremem quando são acusados de terem implantado o modelo neoliberal. Resumo da ópera: na França, Sarkozy quer “endireitar” o tecido esgarçado da rede social. No Brasil, Lula se esforça para “embaralhar” os fios da rede. Quem sabe uma troca não faria bem aos dois países? Lula, um neoliberal socialista, não seria a melhor solução para a França?
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político