“Em todas as coisas, e especialmente nas mais difíceis, não devemos esperar semear e colher ao mesmo tempo; é necessária uma lenta preparação para que elas amadureçam gradativamente” (Bacon). Alguém haverá de dizer: isto é obvio - e bíblico.
Mas o óbvio me veio à mente ao ler uma entrevista do presidente Lula em que este declara que está “trabalhando com a idéia de uma moeda única e de um banco central para os países do Mercosul (ampliado) nos próximos quatro anos”. Em entrevista exclusiva concedida na semana passada (ao Portal Terra Magazine, que alcança 17 países das Américas), o presidente Lula voltou ao tema: “A gente tem que sonhar em ter uma moeda única, um banco único.” Mas a instigante noção de “estar trabalhando com uma idéia” não deveria ser sinônimo de “estar sonhando com uma idéia”.
Nosso presidente parece concordar com a formulação de Fernando Pessoa (1926): “O primeiro passo para uma regeneração, econômica ou outra (do País), é criarmos um estado de espírito de confiança... nessa regeneração. Não se diga que ‘os fatos’ provam o contrário... haja ou não fatos... tanto podemos crer que nos regeneraremos, como crer o contrário. Se temos, pois, a liberdade de escolha, por que não escolher a atitude mental que nos é mais favorável, em vez daquela que nos é menos?”
Pessoa fala em escolher a “atitude mental” correta, como “primeiro passo”. Mas o que importa, de fato, no mundo real, tem que ver com resultados efetivos. Estes, segundo o mesmo Pessoa, dependem de três coisas: “saber trabalhar (que é mais que o trabalho), “descobrir oportunidades” (que é mais que aproveitar as existentes) e “criar relações, tanto na vida material quanto na vida mental”. O resto é sorte, diz Pessoa (“como herdar do tio brasileiro ou não estar onde caiu a granada”). Algo que os antigos chamavam “fortuna” (destino, acaso) - e que tem sorrido amplamente ao nosso presidente, como esperamos que ele saiba.
Em outras palavras, estar trabalhando com uma idéia, ou sonhando com outra, não é, em si, nada criticável, ao contrário. Exceto quando o anúncio de uma idéia ou de um sonho é visto como garantia de sua realização no mundo real, ou seja, quando se vive no reino do desejado.
Os exemplos são inúmeros, além da já citada moeda única. O lançamento do chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi festejado e seus primeiros cem dias comemorados, como se seus resultados já estivessem em larga medida assegurados (“cobrem-me em 2010”, disse o presidente), porque foi anunciado que 1.646 ações estariam sendo monitoradas, das quais 912 seriam obras de todo o tipo e 734 seriam estudos, projetos e discussões em andamento (dentre as quais, notou a competente Miriam Leitão, “discussões com governadores, secretários da Fazenda, senadores e empresários sobre reforma tributária”).
Nosso presidente havia, no ano passado, trabalhado com a idéia, da qual estava convicto, de que o século 21 seria o século do Brasil. Agora, na entrevista exclusiva da semana passada, disse “não ter dúvida que o século 21 será o século da América Latina”.
Podemos e devemos torcer e trabalhar para que nosso presidente, em sua “atitude mental”, esteja certo. Mas o fato é que o resto do mundo, hoje, acha que o século 21 será marcado fundamentalmente pela emergência econômica e política não tanto da América Latina, mas sim da Ásia.
Podemos e devemos tentar mudar esta percepção, mas não será fácil. Muito ajudaria um melhor entendimento, entre nós, do longo processo de integração européia, nas áreas de comércio, investimento, infra-estrutura, regulação e valores compartilhados. Foram necessários dezenas de anos para que se chegasse ao lançamento do euro. Mais de meio século procurando com ações coerentes, persistência, prudência, propósito e visão, transformar idéia e sonho em realidade - no que ainda é uma obra em aberto.
Neste contexto, e apenas a título de ilustração, espero que possamos voltar, quando as condições regionais assim o permitirem, àqueles avanços que já havíamos alcançado, conjuntamente, seis países da América do Sul (os quatro do Mercosul original mais Chile e Bolívia), há mais de seis anos. Após meses de discussões técnicas entre os seis ministros da Fazenda e os seis presidentes de Bancos Centrais e suas equipes, os seis presidentes dos países acima adotaram formalmente, em reunião do Conselho do Mercosul, a decisão de caminhar na direção de maior convergência macroeconômica, pela utilização de um conjunto de objetivos compartilhados, quantificados e monitoráveis.
Alguns exemplos: convergência da relação dívida/PIB para não mais que 40% em 2010 (estávamos em 1999-2000 com vários países acima desse nível). Os déficits fiscais nominais deveriam ter como referência o porcentual não superior a 3% do PIB. A taxa anual de inflação deveria convergir a um número inferior a 5% para todos os países do grupo.
Que os governos dos países da região possam recuperar um dia o mesmo espírito de colaboração e o mesmo clima construtivo que nos permitiu avançar tanto naquele momento e tomar uma decisão que continua em vigor, porque nunca alterada por outra decisão do Conselho. Sem avançar mais nesta área, é muito difícil “trabalhar com a idéia” de uma moeda única.
Vale citar um extraordinário ex-presidente. “A lição que temos para aprender é esta: os problemas não se resolvem com meras proclamações nem com voluntarismos. Resolvem-se com estudo, trabalho metódico, eficiência, com solidariedade, com coesão econômica e social” (Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal).
As citações de Francis Bacon e de Jorge Sampaio expressam a voz da razão. E a razão sempre acaba por encontrar alguma audiência. Que, sob certas condições, pode se transformar em uma imensa minoria a ser levada em conta.
Mães, feliz dia!
Pedro S. Malan é economista
