A fuga da ex-Febem - atual Fundação Casa - e posterior captura de Champinha, o facínora que aos 16 anos ultrapassou todos os limites da crueldade comandando seus companheiros no estupro e tortura da jovem Liana Friedenbach, durante cinco longos dias, para ao final esfaqueá-la até a morte, deixa às escâncaras a distorção profunda que representa, em nosso ordenamento jurídico, tanto a maioridade penal somente aos 18 anos quanto dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 13/7/1990) que, a título de estabelecer “a proteção integral à criança e ao adolescente”, como dispõe seu artigo 1º, se transformou em um dos maiores fulcros da crônica impunidade vigente na sociedade brasileira. E o tema é de especial importância quando tramita no Congresso Projeto de Emenda Constitucional - já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado - tendo em vista a redução da maioridade penal para 16 anos.
Pelo fato de ainda não ter completado 21 anos o facínora, que fugira da Unidade 1 do Complexo Vila Maria da Fundação Casa e fora recapturado 10 horas depois, ainda está sob a égide do Estatuto e não pode ser recolhido a prisão comum, que implicaria segregação mais rígida, consentânea com sua periculosidade. Pretendia o secretário de Justiça Luiz Antonio Marrey - a quem se subordina a Fundação Casa - que o delinqüente fosse transferido para a Casa de Custódia de Taubaté, unidade do sistema prisional destinada a pessoas com distúrbios psiquiátricos. Mas o Ministério Público Estadual não concordou com essa solução e o promotor da Vara da Infância e Juventude opinou que Champinha deveria ser encaminhado à Unidade Experimental de Saúde da Fundação Casa, parecer que foi acatado pelo juiz do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude, determinando que o crudelíssimo assassino fosse levado para aquela Unidade Experimental, no prazo de 24 horas.
E aí se chegou a uma descoberta e a uma solução que beira o surrealismo: descobriu-se que aquela unidade, inaugurada em dezembro, estava, simplesmente - e por motivos ainda não explicados -, sem funcionar. Dessa forma, Champinha foi encaminhado “para uma Febem só dele”, não se sabendo ainda quantos funcionários precisarão ser para lá deslocados para cuidar do facínora ainda protegido, nos seus 20 anos, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Bem é de ver que falar-se de “medidas socioeducativas”, em lugar de pena de prisão para delinqüentes como Champinha - apenas um emblemático exemplo entre a multidão de jovens assassinos que habitam o mercado da criminalidade nacional -, não passa de uma tremenda hipocrisia legal, pois na verdade se sabe (mas jamais se admite) que há inúmeros criminosos irrecuperáveis, só restando à sociedade deles proteger-se, pela via da rígida segregação.
Mas em termos de surrealismo há mais a dizer sobre o ordenamento jurídico vigente. Somente cinco países no mundo - a saber, Guiné, Equador, Colômbia, Venezuela e Brasil - adotam a maioridade penal dos 18 anos. Os países europeus, os asiáticos, os Estados norte-americanos e os outros países latino-americanos, todos fixam mais abaixo a idade da imputabilidade criminal - chegando até ao exagero de 12 anos. Será que só nós, desse grupo de cinco países, estamos certos? Só nós entendemos o grau de maturação da consciência das pessoas, a capacidade de discernimento sobre o valor e o respeito que se deve à vida humana? Só nós podemos entender as misteriosas razões pelas quais um indivíduo que está apto a votar, a eleger um chefe de Estado e governo, um governador, um prefeito, representantes no Legislativo, não está apto a responder por seus próprios crimes?
Ninguém pretende, por óbvio, que a simples redução da maioridade penal “resolva” o problema da criminalidade no Brasil - e quem contesta argumento “contrário” inexistente certamente não o faz de boa-fé. É claro que educação, oportunidade de emprego, equipamentos públicos de esporte e lazer, incentivo ao desenvolvimento cultural, todos esses são fatores essenciais para o combate à delinqüência dos jovens. Mas não se pode desconsiderar que a impunidade, que decorre da menoridade penalmente irresponsável, é o que há de mais nefasto em nossa sociedade, em termos de desvalorização da vida humana. E disso Champinha já é um exemplo antológico.