Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 03, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


África, feitiçaria e
maioridade penal

O incrível caso das crianças de Kinshasa
e
o deslocado debate sobre a punição de
menores
no Brasil

Entre os muitos fenômenos com origem na penúria africana, um dos mais pungentes é o das crianças-feiticeiras de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, ex-Zaire. São crianças às quais são atribuídos poderes capazes de causar desgraças diversas a suas famílias, conhecidos e vizinhos. Muitas acabam abandonadas pelos pais e viram crianças de rua. O antropólogo belga Filip De Boeck é talvez o acadêmico que mais tem estudado o assunto. Num de seus trabalhos, ele transcreve a entrevista com a mãe de Nuclette, menina de 4 anos, acusada por uma vizinha de à noite se transformar em adulto e perpetrar maldades. A mãe, portadora do vírus da aids, decidiu levar a filha ao pastor Norbert, de uma das denominações pentecostais que se multiplicam na África Subsaariana. A mãe relatou a De Boeck:

"O pregador declarou que Nuclette era uma feiticeira. Então ele perguntou onde estava meu marido. Eu disse que ele tinha deixado nosso bairro e que agora morava em outra parte da cidade. Ele disse: 'É Nuclette a responsável pelo fracasso do seu casamento. Ela fez que seu marido fugisse. E, quando você dormia à noite, ela veio, com outras crianças-feiticeiras, e lhe injetou sangue contaminado, com uma agulha diabólica'. Foi assim que eu peguei aids. Fiquei muito, muito magra. Permaneci na igreja mais ou menos por um mês e o pastor me purificou. Estava quase morrendo quando cheguei lá, mas agora me curei da aids".

No momento da entrevista, também a filha estava internada na igreja, sendo submetida a práticas destinadas a livrá-la de sua natureza feiticeira. Outras crianças são expulsas de casa e engrossam os exércitos de meninos e meninas de rua de Kinshasa. A elas, as famílias atribuem as doenças, a fome, a falta de emprego, as brigas e outros tormentos. Segundo a crença popular, as crianças-feiticeiras transformam-se à noite e em bandos, às vezes viajando em vassouras voadoras, saem para espalhar o mal. Muitas crianças acabam acreditando que são, sim, feiticeiras, como é o caso do pequeno Serge, ouvido pelo fotógrafo Vincent Beeckman, outro belga familiarizado com o problema:

"Eu comi oitocentos homens, eu os fiz sofrer acidentes de avião e de carro, cheguei mesmo a ir à Bélgica, graças a uma sereia que me levou até o porto de Antuérpia. Às vezes viajo numa vassoura, às vezes na casca de um abacate. À noite, tenho trinta anos e cem filhos. Meu pai perdeu seu emprego de engenheiro por minha causa, depois eu o matei com uma sereia. Também matei minha irmã e meu irmão, enterrando-os vivos. Também matei todos os fetos de minha mãe".

O relato de Serge cita alguns traços atribuídos recorrentemente às crianças-feiticeiras. Um é que elas gostam de comer gente. Outro, que à noite viram adultos e têm filhos, destinados a tornar-se feiticeiros como elas. Na onda de medo das crianças-feiticeiras que se apoderou do Congo a partir dos anos 90, não por acaso um período de guerra civil, miséria e desintegração, aliam-se antigas crendices africanas com a ação dos pregadores pentecostais e sua ênfase nos artifícios do demônio. Explica De Boeck que os pregadores não inventaram, mas deram força ao mito dos pequenos malditos. As TVs controladas por evangélicos apresentam programas em que as crianças são apresentadas e denunciadas ou submetidas a exorcismos.

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No Brasil não se acredita em pequenos feiticeiros (por enquanto), mas de um tempo para cá o país foi tomado de um medo pânico de crianças. Por um desses desvios próprios destas terras, o martírio do pequeno João Hélio gerou como principal conseqüência o debate sobre o rebaixamento da maioridade penal – quando, entre os cinco acusados da morte do menino, apenas um era menor. Escolhe-se abordar o acessório em vez das questões muito mais complicadas e centrais da corrupção policial ou da legalização das drogas. Este é o incrível país em que o crime organizado é comandado das cadeias por telefones celulares – mas, nas últimas semanas, o que avultou, como causa da violência, é que as crianças e os adolescentes estão fora do alcance da lei penal.

Não que não haja menores que mereçam ser mantidos afastados da sociedade. Para crimes hediondos por eles praticados (e só esses crimes, muito bem tipificados), tenham 15, 16 ou 17 anos, uma boa sugestão foi avançada pelo psicanalista Contardo Calligaris, na Folha de S.Paulo: caberia a "uma comissão, um juiz especializado ou mesmo um júri popular" determinar se devem ser julgados como adultos. Há aí a vantagem, primeiro, de contornar a arbitrariedade de escolher uma idade a partir da qual o jovem seria equiparado ao adulto. E, segundo, de estabelecer um filtro que circunscreva a punição a casos raros e muito especiais. O Brasil já conta com suficientes sinais de africanização. Há favelas, periferias e núcleos sertanejos que não causariam estranheza se tomados como prolongamentos de Kinshasa. Do que menos necessitamos é de uma corrida contra as crianças-feiticeiras.

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