sonho impossível
Com o maior volume de recursos desde a
década de 70, os financiamentos imobiliários
abrem caminho para a casa própria para mais
de 1 milhão de brasileiros
Lucila Soares
Oscar Cabral |
MUDANÇA DE VIDA
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Desde 1994, com o Plano Real, os sonhos de consumo ficaram progressivamente mais acessíveis no Brasil. Nunca se vendeu tanto automóvel, celular, televisor, num movimento que se acentuou com a poderosa expansão do crédito dos últimos anos. Mas a casa própria, bem que simboliza a segurança para a maioria das pessoas, permaneceu no terreno dos sonhos. Agora, a compra de um imóvel voltou a fazer parte das possibilidades da vida real. Desde os anos 1970 não havia tanto dinheiro disponível para o financiamento imobiliário. No ano passado, foram 20,3 bilhões de reais, um crescimento de 48% em relação a 2005. Quando se olham os financiamentos com recursos da caderneta de poupança, que se destinam à classe média, o salto é ainda maior. Os bancos privados destinaram 6,2 bilhões de reais e a Caixa Econômica Federal, outros 3,3 bilhões de reais. O resultado foi que o número de imóveis financiados para a classe média ultrapassou pela primeira vez desde 1988 a marca dos 100.000 (veja quadro), um aumento de 86% sobre o ano anterior. Considerando-se que mais 150 000 imóveis deverão ser financiados em 2007 e que em cada um vão morar quatro pessoas, pode-se estimar em cerca de 1 milhão o número de brasileiros beneficiados no curtíssimo prazo pela volta do crédito imobiliário.
Nas cidades, essa explosão do crédito se materializa em edifícios e condomínios inteiros que sobem em velocidade vertiginosa, hordas de mocinhas a distribuir panfletos nos sinais, páginas e mais páginas de anúncios nos cadernos de classificados dos jornais e recordes sucessivos de vendas batidos nas principais cidades do Brasil. No Rio de Janeiro, um empreendimento de 1.480 unidades na Barra da Tijuca foi quase inteiramente vendido em um dia, num desempenho que tem a pretensão de entrar no Guinness, o livro dos recordes.
O curioso nesse movimento é que, estatisticamente, a maioria dos brasileiros vive em imóvel próprio. O IBGE registrou na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2005, que apenas 16% dos imóveis são alugados no Brasil, enquanto 69,2% já estão quitados e outros 4,2% ainda estão sendo pagos. Esse é um dado informado pelo morador e, num país onde 60% da população vive em favelas e em outros assentamentos precários, certamente não corresponde ao porcentual de pessoas com imóvel escriturado e legalizado. Mas serve para relativizar o que está em jogo na compra da casa própria. Principalmente para a classe média, que, segundo outras pesquisas, andava mais preocupada com saúde, educação e previdência privada, o que faltava era oportunidade, ou seja, crédito. Diante do aumento da oferta, a corrida começou, mostrando que o sonho da casa própria não se resume a adquirir um imóvel. É projeto associado a um melhor padrão de vida. Assim, quem não tinha casa correu para comprar o primeiro imóvel, quem morava num pequeno agora quer um maior. E por aí vai, numa espiral que tem feito a delícia das incorporadoras, das construtoras e também dos bancos e investidores.
Oscar Cabral |
PRIMEIRO IMÓVEL |
Há cinco anos, o consultor paulista Silvano Canola, 48 anos, nem pensava em adquirir um imóvel no Rio, para onde se mudara por motivo de trabalho. Preferia morar em casa alugada e manter a que já tinha, em São Paulo. Em 2003, no entanto, Canola e sua mulher, Cláudia Lysenko, decidiram partir para a compra de uma cobertura na Barra da Tijuca. O financiamento era para ser feito em cinco anos, mas no ano passado o casal vendeu a casa e quitou o saldo devedor. "Houve uma movimentação muito grande no setor imobiliário, e comecei a acreditar na segurança do investimento. Comprei o imóvel na planta ainda na terceira laje", conta Canola.
Do ponto de vista das empresas, a expansão do mercado é promissora. "Há uma demanda quantitativa e qualitativamente reprimida, e o que vemos agora é uma corrente muito estimulante. O mercado cresce em todas as direções, mas o filão da vez é a classe média", diz Ubirajara Freitas, diretor de incorporações da paulista Cyrela, a maior empresa do setor no Brasil, que dobrou o número de lançamentos entre 2005 e 2006 e expandiu seus negócios do sul ao norte do país. A Gafisa, há cinqüenta anos no mercado, registrou volume recorde de lançamentos no ano passado. Eles bateram a marca de 1 bilhão de reais, com crescimento de 54,2% em relação a 2005. A Patrimóvel, a maior corretora de imóveis do Rio, prepara-se para expandir seu raio de ação para o Espírito Santo e os estados do Nordeste. O presidente da empresa, Rubem Vasconcelos, com quase quarenta anos de experiência, aposta que o mercado vai dobrar em três anos. Para 2007, a Patrimóvel já tem contratadas 7.000 unidades, contra 4.400 vendidas no ano passado.
UM PASSADO DE TRISTE LEMBRANÇA
Na aparência, o boom atual faz lembrar a explosão do mercado nos anos 70. Só na aparência. Há trinta anos, o fenômeno teve como ponto de partida o milagre brasileiro, que subsidiou com crédito do Banco Nacional de Habitação o acesso da classe média à casa própria. O BNH foi extinto em 1986, ano que começou com o Plano Cruzado, a primeira de uma infeliz série de tentativas de combate à inflação. Daí por diante, o país mergulhou no caos econômico, e tornou-se impossível a retomada dos investimentos em habitação, o que provocou uma drástica redução no número de imóveis financiados (veja quadro). As construtoras não tinham interesse em construir, porque não havia financiamento. E os compradores se retraíram, porque a renda encolheu e, também, porque muitos viram o projeto da casa própria naufragar em financiamentos que se tornaram completamente impagáveis.
Regis Filho |
SONHO REAL |
O primeiro passo importante para mudar a situação foi dado com o Plano Real. Mas a estabilização da economia não foi suficiente, por si só, para reativar o mercado imobiliário porque os juros nas alturas afastavam bancos e demais potenciais financiadores do investimento imobiliário. Era muito mais negócio, evidentemente, deixar o dinheiro aplicado. Agora, com os juros na casa dos 13%, o financiamento imobiliário volta a interessar aos bancos. Além de viabilizar os empréstimos a taxas compatíveis com as de investimentos, esse é o tipo do negócio que mantém o cliente atrelado à instituição durante pelo menos cinco anos. Ainda assim, outras medidas foram necessárias para que os bancos perdessem o medo de financiar a prazos tão longos. A principal foi a Lei nº 10931, de 2004, que deu início à construção de um novo marco regulatório para o setor. Ou seja, ao contrário do que ocorreu nos anos 70, a expansão do crédito está acontecendo porque foram tomadas medidas concretas para dar segurança tanto a quem compra quanto a quem vende ou financia. Alguns passos foram:
• Alienação fiduciária: o comprador só se torna dono do imóvel depois de quitá-lo. Se não paga, o banco pode retomá-lo. É uma figura que já existia no crédito de automóveis, por exemplo, mas continuava fora do mercado imobiliário.
• Incontroverso: mesmo que discorde do valor total da dívida (como no caso de considerar que os juros são abusivos, por exemplo), o comprador fica obrigado a honrar o principal do crédito, assim como as despesas de condomínio, IPTU e serviços como fornecimento de água e energia elétrica.
• Os contratos deixaram de ser obrigatoriamente indexados à TR. Os juros ainda são estratosféricos, mas começam a surgir financiamentos com taxas prefixadas, que permitem ao comprador saber exatamente quanto vai pagar ao longo de vinte anos. Seria algo impensável no Brasil de cinco anos atrás.
A outra diferença importante deste momento em relação aos anos 1970 é física. Há quase quarenta anos, os edifícios ocuparam os terrenos que resultaram da demolição de casas em bairros tradicionais. Nesse tempo, a região dos Jardins, na capital paulista, era comparada a Copacabana pela velocidade com que os prédios subiam. Só no ano de 1972, foram construídos 500 edifícios de apartamentos na cidade, a maioria na Zona Sul, a partir da Avenida Paulista. Ipanema, no Rio de Janeiro, até então um pacato bairro onde praticamente só havia casas, foi tomado de uma hora para outra por grandes edifícios, num fenômeno registrado na televisão em 1974 pela novela O Espigão, de Dias Gomes. Agora, sem espaço nas áreas tradicionalmente consideradas nobres nas grandes cidades, as construtoras e incorporadoras apostam em grandes condomínios, quase sub-bairros, em regiões mais afastadas ou decadentes. Uma escolha, aliás, movida também pela necessidade de terrenos mais baratos, que viabilizem imóveis de preço compatível com o bolso da classe média.
Oscar Cabral |
Boom imobiliário |
BAIRROS NASCEM E RENASCEM
Caso da Lapa, no Rio de Janeiro, que primeiro viu renascer a tradição boêmia, com inúmeras casas de show, música e dança, e assistiu a um dos mais estrondosos sucessos imobiliários do ano passado, com 688 unidades vendidas em uma hora e meia. Outra área em franca decadência que foi redescoberta pelas construtoras é o bairro carioca de São Cristóvão, onde fica a Quinta da Boa Vista, local de residência da família real brasileira. Nos últimos doze meses, foi palco de dois grandes lançamentos, ambos com nomes que remetem ao passado de glória (Quinta Imperial e Paço Real) e o mesmo apelo de marketing: grandes áreas comuns, com piscina, sauna, quadras de esportes, algo que se chama genericamente de spa, jardins projetados por paisagistas.
A idéia é vender à classe média um padrão antes associado apenas a quem tinha muito dinheiro. Coquetéis de lançamento com tratamento vip para uma camada antes excluída do mercado, corretores que oferecem atendimento personalizado e outros luxinhos também fazem parte da estratégia. São apartamentos voltados para um público que não quer mais apenas um apartamento, e sim "um estilo de vida", como definem os marqueteiros do setor. "Acabou o condomínio com cara de conjunto habitacional. O cara quer sombra e água fresca", diz Rubem Vasconcelos, da Patrimóvel. Outro expert em vendas imobiliárias, o publicitário Maurício Eugênio, responsável pelas campanhas de lançamento de mais de 1.000 empreendimentos nos últimos vinte anos, resume: "Os grandes empreendimentos não cabem mais nas áreas nobres, é preciso criar novos bairros. E, para convencer o futuro morador de que vale a pena sair das áreas tradicionais, é preciso oferecer compensações", diz.
O próximo passo é ampliar ainda mais o público, apostando no potencial chamado "popular" – as famílias com renda entre 3.000 e 5.000 reais. Tradicionalmente voltada para edifícios de médio e alto padrão, a Cyrela é uma das que decidiram investir nesse filão. Para não contaminar sua marca, ligada a empreendimentos de luxo, a companhia criou uma nova bandeira, a Living, que vai construir edifícios e condomínios a preços entre 85.000 e 140.000 reais. A Gafisa seguiu pelo mesmo caminho. Acaba de lançar um grande empreendimento em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com piscina, sauna, quadras de esportes e todos os confortos dos condomínios tradicionais. E a Rossi, uma das mais tradicionais empresas de engenharia, tem no foco na classe média um de seus grandes apelos de marketing.
Esse é um filão promissor por motivos óbvios: o déficit habitacional cresce à medida que se desce na pirâmide de renda no Brasil. Mas a aposta ainda é tímida, porque, para que ela seja bem-sucedida, é preciso que o país persista na queda dos juros, o que permitirá alongar ainda mais o prazo dos financiamentos. Também é necessário reduzir a burocracia, que emperra e encarece os empreendimentos imobiliários. São medidas fundamentais para manter o mercado ativo e também para que seja possível reduzir o déficit habitacional, estimado em 8 milhões de unidades e concentrado na faixa dos que ganham até cinco salários mínimos. Essa é uma faixa que só será atendida com ação governamental, linhas especiais de financiamento e também com a solução de problemas estruturais, como o direito à propriedade.
LONGE DA BOLHA
Quando se olham os números, surge a constatação de que o Brasil ainda tem muito que crescer (veja quadro abaixo). No mercado de imóveis usados, só 35% das unidades vendidas no ano passado foram financiadas. Nos países desenvolvidos, essa proporção é de 100%. Dos imóveis novos, sete a oito em cada dez são vendidos sem financiamento. O grande potencial de crescimento é um dos motivos do otimismo das empresas que apostam no filão da habitação popular. Mas, além disso, elas têm como modelo um inegável exemplo de que esse pode ser um belo caminho. No México, a construção voltada para a habitação popular foi um dos motores da recuperação do país depois do terremoto financeiro de 1994. "O eldorado brasileiro está na construção popular", aposta Fábio Lopes, do Banco Modal, que atua em parceria com algumas das maiores incorporadoras e construtoras do país.
De fato, o mercado imobiliário é um setor capaz de turbinar um círculo virtuoso na economia. A construção civil cria empregos em grande escala para mão-de-obra não qualificada, movimenta uma cadeia que vai da indústria de material de construção, gerando empregos ali também, à energia. Isso melhora a renda e cria um público potencial para novos investimentos imobiliários. O exemplo mexicano também confirma o que o Brasil só está aprendendo agora: beneficiar os maus pagadores em nome de um difuso bem-estar social é um tiro que sempre sai pela culatra. Os bons pagadores se sentem lesados, os bancos restringem o crédito, seja reduzindo o montante disponível para empréstimos, seja cobrando juros altíssimos para compensar o risco de calote, as construtoras não têm como se financiar, e instala-se uma espiral descendente.
É vital perceber que, quando se fala de mercado imobiliário, moradia e crédito habitacional, está se falando do futuro das cidades brasileiras e do bem-estar das pessoas que vivem nelas. O alerta vem da secretária nacional de Programas Urbanos, Raquel Rolnik. "Construir habitação é construir cidade. Essa quantidade fenomenal de crédito vai produzir uma quantidade fenomenal de área construída nas cidades, e isso tem de ser planejado", diz. Raquel lembra que, na média brasileira, 60% do mercado residencial é informal, e precário. Isso exige uma política voltada para a produção em massa de casas para a baixa renda, com a preocupação de não construir outros guetos como os que surgiram a partir da remoção em massa de favelas nos anos 60, dos quais a Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é o exemplo mais emblemático.
Nas páginas seguintes, o economista peruano Hernando de Soto mostra que a informalidade e a regularização da propriedade são os dois grandes nós que os países em desenvolvimento têm de desatar. De Soto criou, no início dos anos 80, o Instituto Liberdade e Democracia, centro de estudos sobre a economia latino-americana de grande prestígio internacional, e foi um dos principais assessores do ex-presidente Alberto Fujimori. Atualmente, divide com a ex-secretária de Estado americana Madeleine Albright a presidência de uma comissão de alto nível para formular as bases legais da regularização da propriedade da população pobre de todo o mundo.
ESTRELAS DO MERCADO
A movimentação do setor imobiliário aparece também nos pregões das bolsas. Já são quinze as empresas que lançaram ações na Bolsa de Valores de São Paulo, e até o fim do ano outras oito devem fazer o mesmo. Em pouco mais de dezesseis meses, o setor tornou-se o quarto maior da Bovespa em número de companhias, atrás de pesos-pesados tradicionais (veja o quadro). Esse é um termômetro importante porque o objetivo de lançar ações é captar dinheiro, e evidentemente esses papéis só encontram comprador quando as perspectivas de crescimento das empresas são boas. A aposta dos investidores está sendo alta, como se vê pela valorização em 2006. O motivo é a combinação de queda de juros com expectativa de reativação da economia, uma dobradinha que sempre alavanca os negócios da construção civil e vem atraindo inclusive capital estrangeiro. O mercado estima que quase 60% da captação da Cyrela, a maior empresa do setor no Brasil, tenha vindo de fundos europeus.
A boa notícia não é apenas para quem investiu na bolsa. Também para quem está comprando ou vai comprar um imóvel, o sucesso dos lançamentos de ações é favorável, porque melhora a saúde financeira das empresas e as torna mais sólidas e seguras. Isso ajuda a deixar no passado as tristes histórias de construtoras que quebraram, abandonando ao deus-dará os que estavam comprando imóvel. E ainda melhora as condições de financiamento. Até dois ou três anos atrás, as incorporadoras precisavam que o comprador pagasse em torno de 40% do valor do imóvel durante a obra. Hoje, podem reduzir esse porcentual para algo em torno de 20%, facilitando muito a vida de quem paga aluguel, e ainda abrir mão dos juros.
As empresas e os bancos também lançam mão com freqüência cada vez maior de um recurso que é um dos pilares dos setores imobiliários maduros e prósperos, como o da Espanha. São papéis lastreados na dívida dos compradores dos imóveis, chamados de recebíveis imobiliários. Esse mercado de securitização de contratos passou de modestos 170 milhões de reais em 2000 para mais de 2 bilhões no ano passado. Seu funcionamento é regido basicamente por uma troca de interesses. A incorporadora ou banco se livra do risco de inadimplência embutido nos financiamentos lançando papéis com vencimento em quinze ou vinte anos, que interessam a fundos de pensão e seguradoras, tipicamente investidores de longo prazo. "É um instrumento importantíssimo para suportar o crescimento", diz José Manoel Alvarez López, superintendente de negócios imobiliários do Santander Banespa, um dos mais ativos do mercado no financiamento da casa própria.
O aumento da oferta de crédito e a chegada à bolsa de valores das empresas do ramo imobiliário preocupam alguns analistas. Será que está ocorrendo tardiamente no Brasil uma bolha imobiliária como a que está sendo desinflada agora nos Estados Unidos? Ninguém duvida que o setor imobiliário ainda tem muito que crescer. Mas quem pretende embarcar nessa onda deve ter, sim, a cautela que exige toda e qualquer aplicação em ações. Por melhores que sejam, as perspectivas de um setor não são garantia de desempenho de cada uma das empresas individualmente.