Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 10, 2007

Maria Antonieta, de Sofia Coppola

Uma vida inútil

Maria Antonieta, de Sofia Coppola, é bem
mais político do que quer parecer


Isabela Boscov

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Trailer do filme

Em Maria Antonieta (Marie Antoinette, Estados Unidos, 2006), que estréia nesta sexta-feira no país, a música vem de bandas como New Order, Air e Gang of Four; os tons pastel que tingem as roupas e os cenários são os mesmos dos confeitos que a corte consome; a linguagem é casual, sem empostação; e Versalhes, aquela pocilga magnífica, aparece livre dos cheiros medonhos e dos excrementos humanos e de animais que, na falta de qualquer tipo de instalação sanitária, se acumulavam em seus cantos. A diretora Sofia Coppola quer porque quer, enfim, deixar claro que esse não é um filme "histórico" ou "de época" sobre a arquiduquesa austríaca que, entregue aos 14 anos em casamento ao príncipe francês Luís XVI (15 anos, obeso e passivo), viria a simbolizar todos os males do ancien régime e, na visão de alguns estudiosos, servir de estopim à Revolução Francesa de 1789.

Filmes históricos são aborrecidos e distantes, justificou Sofia em diversas entrevistas, ao passo que o seu seria uma interpretação pessoal da trajetória de uma menina obrigada a sobreviver sozinha no ambiente hostil e sufocante da corte francesa. Famosamente, Maria Antonieta (no filme, Kirsten Dunst) encontrou um expediente para facilitar sua vida: seu dom para inventar e ditar moda. Calcula-se que ela gastava, por ano, o equivalente a 7 milhões de dólares em seus vestidos impossíveis. Era o dobro do que o orçamento do estado alocava para esse fim, e muito menos do que ela desperdiçava ainda em diamantes, jantares, penteados pouf e na manutenção de seu retiro pessoal, o Petit Trianon. O filme faz jus à obsessão da rainha, nos figurinos da excelente Milena Canonero e nos sapatos encomendados a Manolo Blahnik. E, em mais uma demonstração de como a tática de Antonieta funcionava (a seu favor e contra ela), muita gente caiu no conto de Sofia – a começar pela imprensa francesa, que vaiou em peso o filme no último Festival de Cannes. Mas não é o caso de se deixar enganar. Maria Antonieta é, sim, um filme "histórico". Não apenas pela fidelidade com que adere à biografia da rainha que lhe serve de base, lançada em 2001 pela inglesa Antonia Fraser (e disponível no Brasil pela Record), como no jeito sem-querer-querendo com que evoca o culto obstinado ao ócio e à artificialidade de um estado que se havia divorciado escandalosamente das pessoas às quais deveria servir. Maria Antonieta é, de certa forma, a biografia de uma vida inútil. E é também, como nos filmes anteriores de Sofia, As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros, a história de uma jovem que não tem nenhum poder sobre si mesma.

Sofia andou ela própria à deriva, teoricamente oprimida pela sombra do pai, Francis Ford Coppola, até se reconfigurar como cineasta (depois de ser atriz, estilista, fotógrafa ou apenas princesa do pop e do chic, título que ainda ostenta). Não é difícil a ela, portanto, entender a Maria Antonieta descrita na biografia de Antonia Fraser. Filha da imperatriz Maria Teresa da Áustria, um animal político que, curiosamente, nunca se interessou em cultivar nas filhas um tino ou uma desenvoltura comparáveis aos seus, a jovem arquiduquesa foi sempre um peão. Serviu, primeiro, como oferta de uma aliança entre as inimigas Áustria e França; depois, foi apropriada pela Revolução (que a decapitaria em 1793) como emblema de tudo de vil que havia no absolutismo. Antonieta não desempenhou bem o primeiro papel: Luís demorou sete anos para consumar o casamento. Em cada um desses cerca de 2.500 dias, Antonieta teve os lençóis vasculhados em busca de secreções, e o insucesso em produzi-las divulgado para toda a corte e a nação. Sem um herdeiro, sua situação era precária. Daí, especula-se, Antonieta, coroada rainha em 1774, ter procurado deleite e poder na criação de sua imagem. Isso, ela fez com sucesso inqualificável.

Ao contrário de monarcas como Cleópatra ou Elizabeth I, entretanto, Antonieta não se vestiu para intimidar e controlar; ela se vestiu como uma atriz (o que, à época, era quase que uma meretriz), para a fruição pública, ou como uma garota carente que tenta preencher seu vazio no shopping center. Trata-se da alienação suprema – e, se Maria Antonieta permanece alheio à convulsão que se desenrolava além dos portões de Versalhes, é porque as avestruzes lindamente emplumadas que estavam no interior do palácio também o faziam. A rainha, ao que se presume, surpreendeu-se ao se ver convertida na personificação do abjeto, e aí está a lição política do filme de Sofia: não há nada mais frustrante e insatisfatório – além de perigoso – do que ser um símbolo que não está no controle do que simboliza.

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