Relatório mostra que 75 pessoas, em sete anos, ganharam
4 300 vezes na loteria. A suspeita: lavagem de dinheiro
Policarpo Junior
Moreira Mariz | Dida Sampaio/AE |
João Alves, "premiado" 56 vezes, e Alvaro Dias, autor da denúncia |
Como se pode constatar diante das imensas filas que se formam de vez em quando diante das casas lotéricas, o brasileiro adora apostar. Na semana passada, uma denúncia apresentada pelo senador Alvaro Dias (PSDB-PR), segundo a qual existem evidências de que bandidos usaram os sorteios para lavar mais de 30 milhões de reais, jogou uma nuvem de suspeita sobre a lisura dos concursos. Circularam, inclusive pela internet, comentários de que os sorteios seriam fraudados, de modo a produzir resultados previamente acertados. Na verdade, não há suspeita de fraude nos resultados da Mega-Sena, Dupla Sena, Lotomania, Quina, Raspadinha ou Loteria Esportiva. Os bandidos entram justamente depois que o sorteio foi realizado. Na denúncia do senador, apoiada num relatório do Coaf, órgão que fiscaliza as operações financeiras no país, 75 "apostadores" acertaram, nos últimos sete anos, em torno de 4.300 vezes na loteria e ganharam 32 milhões de reais – um grau de acerto totalmente despropositado pela lei das probabilidades.
A Polícia Federal, que está investigando o assunto, suspeita da existência de uma quadrilha que usa as loterias oficiais para lavar dinheiro sujo do crime (veja quadro). Para coibir essa prática, desde 1999 a Caixa Econômica Federal, que paga os prêmios lotéricos, é obrigada a informar ao Coaf o nome dos felizardos que receberam três ou mais prêmios num único ano. Foi a partir dessas informações que se descobriu a sorte dos 75 cidadãos sob investigação. Em alguns casos, os sinais de fraude são evidentes. Um apostador "ganhou" em todos os concursos existentes – da Mega-Sena à Raspadinha – numa única semana. Outro apareceu na Caixa para resgatar o prêmio de 54 bilhetes de quatro loterias diferentes, todas sorteadas no mesmo dia. Há o caso de um apostador que ganhou na loteria durante oito semanas consecutivas, e algumas vezes com mais de um bilhete vencedor. As investigações já identificaram casos de sorte genuína, de gente que conseguiu ganhar três vezes na loteria num ano, mas também já encontraram "apostadores" suspeitos de estelionato, contrabando e tráfico de drogas.
A prática de lavar dinheiro sujo por meio de prêmios lotéricos não é nova. No início da década de 90, quando foi flagrado desviando dinheiro do Orçamento da União, o então deputado João Alves, já falecido, justificou seu patrimônio dizendo que ganhara 56 vezes na loteria. Ninguém levou a explicação a sério, mas o uso de bilhetes premiados permitia ao deputado lavar todo o dinheiro desviado e ainda declarar à Receita Federal a origem de seu enriquecimento – a sorte. "Uma organização criminosa atuava dentro da Caixa Econômica Federal", diz o senador Alvaro Dias, que requisitou na semana passada a lista de agências onde foram pagos os prêmios suspeitos. Segundo o parlamentar, o problema está concentrado em São Paulo.
Três irmãos, residentes no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, por exemplo, embolsaram 3,7 milhões de reais depois de acertar nada menos que 525 vezes na loteria em dois anos. A Caixa informa que não tem indícios de envolvimento de seus funcionários nas fraudes e que desde 2002, quando as investigações começaram a ser feitas de forma sistemática, os casos suspeitos praticamente desapareceram. Assim se espera. Afinal, é uma prática ilegal conhecida, usada há anos, que pode ser facilmente detectada. A partir de 1999, quando a Caixa passou a informar ao Coaf o nome dos apostadores premiados, só mesmo a leniência com o crime justifica que ainda hoje um bandido possa lavar dinheiro com loterias.