Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 13, 2007

Kirchner: surpresas e continuidade- Boris Fausto



Artigo
Folha de S. Paulo
13/3/2007

Néstor Kirchner seria um candidato quase imbatível nas eleições presidenciais deste ano. Por que colocar o verbo no condicional?

NESTE ANO em que se completa pelo menos o primeiro mandato do presidente argentino Néstor Kirchner, vale a pena lançar um olhar nos seus quase cinco anos de governo. Podemos, assim, fixar-nos um pouco no quadro sócio-político do país vizinho, deixando de lado as análises entediantes de um Mercosul gravemente enfermo.
Não foram poucas as surpresas do governo Kirchner, a começar pelas circunstâncias da sua eleição, em 2003. Ela ocorreu no âmbito de uma fragmentação e de uma crise dos partidos políticos sem precedentes na história da Argentina democrática.
Como assinala o historiador Natalio Botana no livro "Poder y Hegemonía - El Régimen Político Después de la Crisis", desde 1983, com Raúl Alfonsín, passando pelas duas eleições de Carlos Menem (1980 e 1995) e, por último, pela de Fernando de la Rúa, em 1999, os argentinos elegeram presidentes por grande maioria de votos.
A eleição de Kirchner representou um desvio dessa tendência, pois ele venceu no primeiro turno com apenas 22% dos votos. O desvio da tendência resultou da manobra de seu principal adversário, o ex-presidente Carlos Menem, que desistiu de disputar um segundo turno considerado perdido, pensando, assim, fragilizar o mandato do novo presidente.
Hoje sabemos que o cálculo era equivocado. Na época, parecia revestido de esperteza política. Kirchner nada tinha de carismático ou, ao menos, não ostentava o carisma que se costuma atribuir a líderes populistas, entre os quais ele se inclui. Além disso, sendo proveniente de uma Província periférica (Santa Cruz), acreditava-se que ele seria manipulado pelos figurões do peronismo, especialmente por seu então padrinho Eduardo Duhalde, a quem sucedeu no poder.
Não há dúvida de que a razão principal do prestígio de Kirchner, a princípio inesperado, adveio do êxito de sua política econômica, encarnada no ministro Roberto Lavagna, hoje seu possível adversário nas eleições.
Em meio a uma situação desesperadora, Lavagna soube ousar tanto nas negociações da dívida externa com o FMI e outros credores internacionais quanto na aplicação de medidas internas. Como se sabe, a Argentina passou a ostentar índices invejáveis de crescimento do PIB, superiores a 8% ao ano, ainda que as desigualdades sociais e a pobreza sejam flagrantes.
Os êxitos não se explicam apenas pela razão apontada. O enquadramento de chefes militares e da cúpula da Polícia Federal, a revisão das leis de anistia e a reabertura de processos por crimes da época da ditadura, considerados imprescritíveis, deram a Kirchner uma aura de defensor dos direitos humanos nada desprezível.
Ao tratar de passar a limpo o passado, levando responsáveis por muitas atrocidades aos tribunais, o presidente veio ao encontro dos desejos de grande parte da população argentina, cuja sensibilidade no que diz respeito à repressão ditatorial contrasta com a quase indiferença que o tema suscita no Brasil.
Por outro lado, o estilo de Kirchner vem produzindo também dividendos. Ele assumiu o antiamericanismo, que nunca desapareceu na América Latina e, em particular, na Argentina, mas sem a radicalidade do discurso e de algumas medidas de Chávez. Nesse ponto, o presidente argentino aproxima-se das atitudes de um menino mal-educado, que, muito aplaudido, ousa dar bananas para o FMI.
Seria equivocado negar, de qualquer forma, a habilidade de Kirchner e o resultado de suas ações.
Isso não significa ignorar os problemas do país, seja na área econômica, em que a inflação ameaça escapar ao controle, em que os serviços públicos correm risco de se deteriorar, seja em outras áreas, nas quais se revelam as inclinações autoritárias de Kirchner. Exemplos dessa tendência são a concentração de poderes nas mãos do Executivo ou as sanções indiretas a jornalistas que não se afinam com a visão do presidente.
Seja como for, Kirchner seria um candidato quase imbatível nas eleições deste ano. Por que colocar o verbo no condicional? Porque o presidente argentino poderá se dar ao luxo de optar por uma "surpresa anunciada", articulando a candidatura de sua mulher -a combativa senadora Cristina Fernández de Kirchner- para, quem sabe, voltar a disputar a Presidência nas eleições seguintes.
Como se vê -e esse, obviamente, não é o único caso ilustrativo na América Latina-, o poder é viscoso e ninguém gosta de se desgrudar dele quando goza de suas benesses e de apoio popular.

BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

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