Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 18, 2007

FERREIRA GULLAR

É o mar e o sol misturados


Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes de despertar admiração em contemporâneos

"RIMBAUD NA África", de Charles Nicholl, que acaba de ser editado em português, me fez regressar às indagações que me assaltaram quando, jovem ainda, tomei conhecimento da poesia desse poeta-menino e de sua vida atordoante.
Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes de despertar a admiração e a perplexidade de seus contemporâneos, particularmente daqueles que com ele conviveram nos primeiros três anos de sua intermitente estada em Paris. Um garoto de 16 anos, chegado da provinciana Charleville, trazendo nos bolsos alguns poemas de surpreendente beleza e originalidade, que violavam os conceitos estéticos, religiosos e morais da época, só podia ser visto como um gênio. Acrescentemos a isso dois olhos azuis de inquietante transparência, que pareciam arrastar quem os fitasse ao paraíso ou ao inferno.
É que aquele menino cujos poemas revelavam um lado deslumbrante e perturbador da realidade comportava-se como um pequeno demônio, que se exibia nu à janela da casa de um amigo que o hospedara, levando os vizinhos a chamar a polícia; que se deitava, vestido de roupa amarfanhada e chapéu, no jardim de outro amigo, a fumar haxixe num cachimbo para chocar os transeuntes, ou, nos bares do Quartier Latin, insultava os companheiros de mesa e os agredia, como fez com Etienne Carjat, a quem feriu com a ponta metálica de uma bengala. Carjat, autor da célebre foto de Rimbaud menino, que todos conhecem, tomado de fúria, destruiu todas as fotos que fizera dele, exceto três que não tinha consigo.
O auge desses desregramentos foi a relação homossexual que manteve com Paul Verlaine, que arrastou para Londres, destruindo-lhe o casamento. Meses depois, decide romper a relação, levando Verlaine ao desespero e, finalmente, a tentar matá-lo com um tiro de revólver. Enquanto aquele é condenado e preso, Rimbaud acaba de escrever, no celeiro da casa da mãe, o poema em prosa "Uma Estadia no Inferno".
Tem então 19 anos e abandona a literatura. Entrega-se, a partir daí, a sucessivas viagens a pé por vários países europeus, chegando a inscrever-se como voluntário no Exército colonial holandês, de que deserta três meses depois. No último encontro com Verlaine, em Stuttgart, em 1875, este, recém-saído da prisão e convertido ao catolicismo, tenta doutriná-lo. Rimbaud o surra e o faz voltar para a França. "Minha vantagem é que eu não tenho coração", afirma, por aquela época.
Essa vida de andarilho aventureiro culmina com a decisão de transferir-se para a África, onde se fixa definitivamente, em 1880. Nunca mais voltará à Europa, a não ser para morrer, 11 anos depois, de um tumor no joelho direito.
A impressão que se tem, lendo o livro de Nicholl, é que, assim que desembarca em Aden, Rimbaud se torna outra pessoa. Ele havia escrito, na famosa "carta do vidente", que "eu é um outro". Pode-se então dizer que esse "eu" -que não era ele- deu lugar a um outro, que era? Ou seria mais correto afirmar que o Rimbaud adolescente, que se inventou nas noitadas de Paris e nos poemas geniais, tomou de fato horror à poesia e ao desregramento para na África tórrida e rude reinventar-se como um homem comum, só preocupado com transações comerciais e viagens de negócio?
Durante todos os anos que passa entre Aden e Harar, jamais alude à sua primeira vida e, quando alguém o indaga sobre isso, responde que preferia "não remexer naquele lixo".
Negocia com ouro, café, pele de animais, mete-se no tráfico de armas, compra uma escrava e vive com ela em concubinato e depois com outra mulher também negra. Não se sabe de nenhum escândalo, de nenhum relacionamento homossexual durante seu longo exílio africano. Todos os que o conheceram ali falam dele como um homem reservado e triste, que às vezes fazia rir com suas tiradas sarcásticas, mas um negociante ativo e responsável.
Só não perdeu o hábito de andar quilômetros a pé, então à frente das caravanas de camelos, causa (talvez) das varizes que lhe surgiram na perna e obrigaram-no a ir para a França. Numa padiola, fez a mais terrível de suas viagens até chegar ao porto onde embarcou para Marselha. Amputaram-lhe a perna. Esquálido, temendo morrer, chora abraçado à irmã, que tenta confortá-lo. "Eu vou para o fundo da terra e tu continuarás andando ao sol", responde ele. Morreu em 10 de novembro de 1891.
Fecho o livro, arrasado. E me vem à memória o trecho de um poema seu: "Mas as aranhas do cercado/ comem apenas violetas".

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