Estava eu lendo quando me dei conta de que era domingo de Carnaval e reinava silêncio total |
Já antes enfrentava muito barulho durante o Carnaval também aqui na minha rua. Quase em frente ao meu prédio, havia um casarão abandonado com um amplo jardim que um grupo de foliões da vizinhança ocupava e ali ficava sambando e bebendo cerveja. A coisa cresceu: surgiu então um organizador e instalou alto-falantes que passaram a me atazanar, durante todo o Carnaval, até as 23h. Eu não podia ler nem escrever, nem ouvir a música que desejasse.
Mas a vida muda e o casarão foi demolido para, em seu lugar, construir-se um hotel. O organizador, então, montou um palanque em frente à minha janela e instalou uma banda de música, que multiplicou por dezenas de decibéis meu tormento. Houve até um episódio engraçado, numa ocasião em que eu estava à janela acompanhando as providências do que seria a tortura de meus próximos dias. Como resido no segundo andar, o organizador do evento aproximou-se da janela onde eu estava e me disse:
-Amizade, liga este fio aí na tomada da tua sala.
Não acreditei: tendo nas mãos o fio elétrico dos alto-falantes, ele, o meu torturador, desejava que eu lhe fornecesse a eletricidade necessária para ser torturado.
-Você deve estar de gozação, respondi eu, e me retirei da janela.
Ele acabou conseguindo a adesão de algum outro morador, porque, não demorou muito, ouvi-lhe a voz pelo alto-falante:
-Testando, testando...
Para minha desgraça, o teste deu positivo e eu, naquela noite, mudei-me para o apartamento de minha sogra, na Barata Ribeiro, e só voltei para casa depois das 23h.
Levado pelo entusiasmo, o organizador fez de seu batuque um bloco e passou a circular pelas ruas próximas, dando-me alívio. Enquanto isso, outras bandas e blocos surgiram no bairro, perto de minha rua. Na Rodolfo Dantas, nasceu um e, na praça do Lido, nasceu outro, o Boca Maldita. E, também na minha rua, na quadra da praia, surgiu uma espécie de baile a céu aberto, com banda tocando e gente dançando até altas horas da noite. E esses blocos e bandas, todos, também passavam debaixo de minha janela, num baticum que não me desagradava, porque ia logo embora. Confesso mesmo que até gostava e, mais de uma vez, desci e fiquei à beira da calçada, vendo a banda passar, sambando e cantando com os foliões.
Por razões que desconheço, o palanque que ficava em frente à minha janela foi transferido para a rua ao lado, que é fechada ao tráfego, o que veio melhorar meu Carnaval. Um dia, o organizador passou por mim com uma aparência doentia; soube depois que morrera. A banda acabou e o Carnaval do meu pedaço de rua se limitou, desde então, aos blocos de outras ruas que passavam por ela. Lá adiante, porém, na quadra da praia, a alegria continuava a imperar, com chope, muitas clarinadas e muita gente pulando. Às vezes, ia até lá, para gozar daquela alegria.
Mas por que estou falando de Carnaval, se o Carnaval já passou? É que, neste ano, estava eu lendo tranqüilamente em minha sala quando me dei conta de que era domingo de Carnaval e, no entanto, na rua, reinava silêncio absoluto. Levantei-me, fui até a janela: nenhum sinal de blocos e, na quadra da praia, ninguém tocava nem pulava. O que houve? Que aconteceu com o bloco da Rodolfo Dantas e com o Boca Maldita? Lembrei-me que, também no dia anterior, sábado, nenhum bloco passara por aqui. Sim, é verdade que gosto de silêncio, mas não a este ponto, dando-me a impressão de que o Carnaval acabou no meu bairro.
A última vez que passei um domingo de Carnaval tão vazio e silencioso foi no exílio, em Buenos Aires. Saí de casa sem rumo, parei num bar da Calle Florida e me embebedei, cantarolando baixinho: "as águas vão rolar..."