Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 20, 2007

Clóvis Rossi - Roleta-russa, agora no ar




Folha de S. Paulo
20/3/2007

São Paulo acrescenta continuamente requintes à roleta-russa em que se transformou a vida na cidade. Antes, o paulistano já sabia que, se escapasse de assalto, poderia cair em um seqüestro (relâmpago ou duradouro, que a roleta-russa é sofisticada).
Se não fosse seqüestrado, teria o carro roubado. Se ficasse com o carro, afundaria em algum dos alagamentos bíblicos do cotidiano. Se não naufragasse, ficaria preso em um congestionamento cinematográfico. E, se nada disso ocorresse, ainda haveria na agulha a bala de cair no buraco do metrô e ter o cadáver resgatado apenas uma semana ou dez dias depois. Soma-se agora à roleta-russa até o ato de fugir dela ao deixar a cidade por via aérea. Sempre há o risco de levar para ir ao Rio ou a Salvador o mesmo tempo que cidadãos normais tardam para ir de Nova York a Londres (ou até Tóquio).
O caos aéreo serviu para acentuar outra característica dos paulistas (na verdade, comum a 99% dos brasileiros): em vez de enfrentar o problema, tratam de acomodar-se a ele. No lugar de drásticos protestos contra o apagão dos vôos, o brasileiro faz estoque de livros, de iPods ou de "games" para celular -e agüenta o tranco na roleta-russa dos aeroportos.
Já já alguém vai escrever o manual de auto-ajuda: "Como passar o dia em Congonhas e ser feliz". Nem em aeroporto do interior do Haiti admite-se que a chuva possa ser motivo para interrupção dos vôos. Aqui, aceita-se tranqüilamente medir o volume de água na pista para autorizar ou não vôos no mais movimentado aeroporto da pátria esculhambada.
Coisa de comédia, que, no entanto, se incorporou aos usos e costumes do país, como se fosse parte da paisagem. Como as favelas, as balas perdidas, os assaltos, os seqüestros, a educação em frangalhos, a saúde profundamente doente, os políticos corruptos...

crossi@uol.com.br

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