Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 10, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Riobaldo e Hitler

Uma janela sobre o período em que o jovem
diplomata Guimarães Rosa serviu na Alemanha

A mente do escritor ocupava-se com suas fábulas encantadas, Riobaldo, lá no fundo, bem no fundo, já estava em gestação – mas a realidade do mundo exterior era bem outra, de bombardeios, perseguições, morte e medo. Estamos na Alemanha, período de 1938 a 1942 (atenção: Alemanha, 1938-1942!), e o escritor em questão é o jovem João Guimarães Rosa, a alguns poucos anos de publicar Sagarana (1946) e a alguns muitos de Grande Sertão: Veredas (1956). Ainda no início da carreira diplomática, Rosa foi cair logo na Alemanha de Hitler, no alvorecer da II Guerra Mundial, ao ganhar seu primeiro posto no exterior. Ele é agora o cônsul adjunto do Brasil em Hamburgo e mantém um diário onde registra:

7.IV.1940 Fui ver a segunda parte do Faust. Passaram tropas, durante horas, em frente da estação.

30 de maio (5ª feira) ­ 12 horas e 20. Estou trabalhando, corrigindo o último trecho do O Burrinho Pedrês. Mugiram as sirenes. Alarme! 10 minutos para uma hora (três) quatro estampidos surdos, subterrâneos. Bombas? Mais bombas, perto, sempre mais perto.

O período alemão de Guimarães Rosa, um dos mais intrigantes de sua vida, ainda carece de um relato minucioso e abrangente. Uma janela, pequena mas preciosa, sobre aqueles anos é aberta no informadíssimo resumo biográfico da especialista Ana Luiza Martins Costa publicado na última edição (realizada com o capricho de sempre) dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles. É nesse trabalho que aparecem trechos do inédito diário do jovem escritor. Mexe com a imaginação saber que foi tão perto de Hitler que aquele que viria a ser o maior escritor brasileiro do século XX afiava, no período entre os 30 e os 34 anos de idade, suas garras de fera das letras. O demônio, que teria papel central em sua obra, morava ali vizinho, tendo como uma de suas especialidades a perseguição aos judeus. Rosa registrava:

23.II.940 Em Budweis, cidade do sul da Bohemia, (...) os judeus só poderão andar de bonde nas plataformas. Primeira cidade a introduzir isso.

20.IX.941 Ontem começou a obrigação do distintivo na roupa dos judeus.

22-X-941 (...) judias chorando no consulado, por terem recebido a ordem de evacuação de Hamburgo para o dia 24. Horrível.

O clima reinante levou o jovem cônsul adjunto a viver episódios extraordinários. Um deles foi a visita que fez a frau Wetterhuse, uma senhora de mais de 90 anos que, doente, pediu que fosse vê-la em casa. O próprio Rosa narrou esse caso, num artigo primeiro publicado na imprensa, depois incorporado ao livro póstumo Ave, Palavra, sob o título "A velha". Frau Wetterhuse vivera no Brasil e falava português. Disse que até conhecera o imperador dom Pedro II, em Petrópolis. Junto a ela, ao receber Rosa, tinha sua filha, Angélika. E Angélika era justamente o motivo pelo qual se permitira incomodar o cônsul adjunto. Frau Wetterhuse contou, numa conversa que se desenvolvia ora em alemão, ora em português, que fora casada com um judeu. Angélika era portanto considerada uma mischling, uma mestiça, e corria perigo. Ocorre – e nesse ponto a velha senhora passou a falar em português, para que a filha não entendesse – que na verdade ela não era filha do marido legítimo, mas fruto de um romance extraconjugal com um brasileiro. "Ele foi um vosso compatriota, um homem nobre... O amor de minha vida", disse.

Estaria a velha falando a verdade? Ou inventando uma história, para salvar a filha? Não havia fiapo de documento para provar o que dizia, e por isso o cônsul adjunto não pôde fazer nada. Mas em outros casos ajudou judeus a fugir para o Brasil. Em favor deles, emitia mais vistos do que as cotas estipuladas em lei, e por sua atuação ganhou o reconhecimento do governo de Israel.

Nesses casos, temos o cônsul no meio do redemoinho. Se estamos na Alemanha, travessia dos anos 30 para os 40, como evitá-lo? Em março de 1941, um bombardeio próximo quebra a janela de sua casa. Em maio, uma bomba atinge – sem causar vítimas – o consulado brasileiro. ("Terrível, o estado do nosso pobre consulado", lança no diário.) Mais intrigante, porém, do que flagrar os estilhaços do grande conflito passando tão perto é constatar que a vida prossegue. Num dia Rosa ia ver o Fausto, de Goethe, no teatro, noutro ia visitar as casas de Goethe e Schiller em Weimar. Sobretudo, prosseguia seu labor literário, escrevendo ou tomando notas enquanto caíam as bombas.

Bom... O fato é que não há mesmo como parar tudo na vida. Se havia operários operando as fábricas, lojistas cuidando das lojas, pedreiros carregando pedras e costureiras costurando, por que não haveria escritores escrevendo? Neste momento mesmo, há gente tocando sua vida, como se nada de mais estivesse acontecendo em Bagdá, na Faixa de Gaza e em Darfur. Não há nada de misterioso nisso. Mas ao mesmo tempo há, sim.

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