Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 03, 2007

A recriação do mundo


A obra monumental do indiano anish kapoor
é tema de uma mostra de sucesso no brasil.
E que não deixa duvida: a grandeza da arte
contemporanea passa por seu nome


Marcelo Marthe

Scott Olson/Getty Images
Cloud Gate, em Chicago: o "feijão" de aço consumiu
23 milhões de dólares e levou sete anos para ser polido

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Anish Kapoor é um artista que pensa grande. Também pensa colorido, pensa translúcido, pensa refletivo, pensa esfumaçado e – o que é quase um anátema na arte contemporânea – pensa belo. O resultado disso tudo se traduz em filas. A mostra Ascension (Ascensão), que estreou recentemente em São Paulo, é o maior sucesso das artes plásticas no Brasil nos últimos tempos. No Rio de Janeiro, onde foi inaugurada em julho passado, atraiu mais de 400 000 visitantes. Em Brasília, sua parada seguinte, foram outros 50 000 espectadores. Números tão retumbantes (ainda que se expliquem também pelo acesso gratuito às filiais do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, onde se realiza) só costumam ser alcançados por exposições dedicadas a monstros consagrados, como a do escultor francês Auguste Rodin (1840-1917), nos anos 90. Bem mais difícil é ver longas filas para conferir uma mostra de arte contemporânea. Anish Kapoor tem apelo público não porque seja "fácil" ou faça concessões ao gosto não lapidado das massas – embora ele entenda perfeitamente o que causa impacto –, mas porque tem qualidades que distinguem as obras de arte em qualquer lugar ou qualquer tempo. Suas esculturas e instalações, não raro de proporções monumentais, levam o espectador a ver o mundo por ângulos inusitados e lhe proporcionam uma experiência metafísica. Dão-se as costas a elas com a sensação de que se ganhou algo, em termos estéticos, sensoriais ou até existenciais. Um exemplo é a obra que dá mote à mostra brasileira. Ascension consiste numa coluna de fumaça que se desprende do chão e se eleva até o teto – um conjunto que causou impacto no CCBB carioca com seus 36 metros de altura (reduzidos para 8 em São Paulo por questão de espaço). "Trabalhos em grande escala produzem um efeito de admiração e assombro. É essa sensação que persigo em meu trabalho", disse Kapoor a VEJA, durante uma passagem por São Paulo.

Roberto Setton
A concha de bronze de 4,5 metros de comprimento em exibição em São Paulo: formas elementares e intuitivas, de apelo imediato


Mais fácil que definir o trabalho de Kapoor é elencar os defeitos que ele não tem. Pode-se começar por um rótulo que ele rechaça com toda a força: o de "artista étnico". Filho de pai indiano de fé hinduísta e mãe judia oriunda do Iraque, Kapoor nasceu em Bombaim, hoje rebatizada de Mumbai, e mora na Inglaterra desde a juventude. Tão logo despontou, nos anos 80, foi saudado por uma parcela da crítica como um expoente do multiculturalismo. Uma estupidez, já que a característica que define sua obra é justamente a universalidade. Kapoor, aliás, afirma que não suportaria trabalhar em seu país de origem, por causa do culto à "indianidade". "Os nacionalistas que me desculpem, mas não me interessa criar obras que exijam conhecimento prévio de uma cultura para ser compreendidas", diz Kapoor, cuja obra evoca a sensação de transcendência que se costuma associar à catarse religiosa – um fenômeno presente, de maneiras diferentes, tanto na cultura indiana quanto na ocidental.

Apesar das reflexões complicadas que Kapoor provoca, seu apelo popular é facilitado pelo uso de formas elementares e intuitivas. A concha de bronze de 4,5 metros de comprimento que se encontra no hall de entrada do CCBB paulistano sugere um órgão sexual feminino, imantado simultaneamente de materialidade e de pureza. Marsyas, a imensa estrutura de aço e PVC vermelho com que Kapoor ocupou em 2002 o vão central da galeria Tate Modern, em Londres, lembra duas trompas de Falópio ligadas a um útero. O artista lida ainda com um ingrediente imediatamente acessível: a ilusão visual. Assim como os velhos mestres da pintura, Kapoor maneja formas e materiais de maneira a provocar vertigem no espectador e pôr em xeque suas noções de tempo e espaço. Pertence, enfim, a uma rara estirpe, seja nas artes plásticas, na literatura ou na música: a dos artistas que criam universos próprios, que reinventam o mundo. Reinventam e conquistam: ele é um artista que tem fome e sede de espaços públicos, impulso que, quando levado a sério, dá um trabalho tremendo.

Para viabilizar seus projetos ambiciosos, Kapoor se vale de técnicas da arquitetura, da aeronáutica e da indústria pesada. Sua obra mais famosa, Cloud Gate, é uma estrutura de aço com 20 metros de comprimento e 12 de altura, que resplandece num parque de Chicago e custou 23 milhões de dólares – o que faz dela, possivelmente, a obra de arte pública, executada por um artista vivo, mais cara do mundo. Para adquirir a superfície brilhante que reflete os arranha-céus da cidade americana, o "feijão" – o apelido popular; a idéia original é de gota gigante de mercúrio – passou por sete anos de polimento. No ano passado, ele fez outra intervenção, essa de caráter temporário, em Nova York. Instalado no Rockefeller Center, Sky Mirror era um espelho de 10 metros de diâmetro e 23 toneladas, que refletia – e distorcia – a paisagem urbana em torno de si.

Roberto Setton
Nancy Kaszerman/Uma Press
Peça de lona montada em praça de Nápoles (à esq.), o Sky Mirror de Nova York (à dir.) e instalação feita de cera trazida ao Brasil: vertigem e ilusão, como os velhos mestres

Roberto Setton

Nos últimos anos, as artes plásticas vêm passando por um período de efervescência, como provam o mercado superaquecido e o florescer de experiências que testam constantemente os limites do que, afinal, pode ser considerado arte hoje – quando não a paciência do público em geral. Isso ocorre, em especial, na Inglaterra. Embora integre esse quadro geral, Kapoor nunca comungou daquela que é a peça de resistência de outros representantes conhecidos da nova arte inglesa: chocar, chocar e chocar mais ainda. Esse expediente foi adotado às últimas conseqüências nos anos 90 pela geração dos chamados Young British Artists (Jovens Artistas Britânicos). Na época, suas obras elaboradas com cadáveres de animais, sangue e excrementos causaram impacto e escândalo – mas, com o tempo, a estreiteza do horizonte e o vazio das idéias foram se tornando evidentes. "No início, eu me impressionava com a energia deles. Hoje, infelizmente, vejo que estão preocupados é com dinheiro", critica Kapoor, que, no entanto, não tem nada contra o moderno culto à celebridade e às contas bancárias recheadas. Aos 52 anos, casado, uma filha de 11 e um menino de 10, inclui entre seus amigos o roqueiro Mick Jagger e o escritor Salman Rushdie. O incentivo do cantor dos Rolling Stones, aliás, foi decisivo para a realização de sua mostra no Brasil – impressionado com a presença de 1,5 milhão de pessoas num show que fez na Praia de Copacabana, Jagger teria dito a Kapoor que ele não deveria subestimar o público do país. Quanto ao dinheiro, o artista é um pragmático. Para ele, fazer obras pensando apenas em satisfazer o mercado é um pecado mortal. "Mas, fora isso, não existe nada de errado em faturar um pouquinho", brinca Kapoor, que há pouco vendeu um trabalho por 2,2 milhões de dólares. A recriação do mundo, evidentemente, tem seu preço.

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