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VEJA visitou o Irã, país que pode levar o Oriente Médio
a uma explosão ou ser a chave para sua estabilidade
Carlos Graieb, com fotos de Paulo Vitale, de Teerã
A ALMA XIITA A celebração do Ashura, na cidade de Qom: fogo e martírio |
Como quase todos os prédios da capital, Teerã, o Parlamento iraniano não chama atenção pela arquitetura. De fora, é uma construção que se confunde na paisagem urbana. Mas seu plenário é outra história. Decorado em verde, a cor do islamismo, ele exibe dois retratos gigantescos. Um representa o aiatolá Khomeini, mentor da revolução islâmica que, em pleno século XX, impôs a um Irã laico e com chances de se modernizar a treva da teocracia. Ao lado se vê a imagem de seu sucessor, Ali Khamenei, líder supremo da nação desde 1989. Nas galerias do fundo, dezenas de mártires políticos são homenageados. Em 21 de janeiro, três dias antes de seus antípodas americanos em Washington, os congressistas iranianos se reuniram para ouvir no Parlamento uma espécie de Discurso sobre o Estado da União. O orador era uma das figuras mais incendiárias da política contemporânea – o presidente Mahmoud Ahmadinejad.
Desde sua eleição, em meados de 2005, Ahmadinejad desconcerta o mundo com sua retórica agressiva. Ele fala sobre a transformação do Irã numa potência atômica, dispara frases ultrajantes a respeito da aniquilação de Israel e da inexistência do holocausto na II Guerra e viaja pelo mundo empunhando a bandeira do antiamericanismo. Seria reconfortante descartá-lo como um bufão sinistro. Mas isso não é correto. Ahmadinejad é o beneficiário e o símbolo da mudança inesperada que, 28 anos depois da revolução islâmica, fez do Irã, mais uma vez, um centro de tensão mundial.
Em meados de 2003, depois da queda de Saddam Hussein no Iraque, apenas dois destinos pareciam reservados ao país dos aiatolás. Num cenário, a ditadura religiosa conseguiria sobreviver, mas condenada ao isolamento, como pária internacional. Noutro, as pressões de uma população majoritariamente jovem resultariam no colapso do autoritarismo e na abertura do país. As incursões militares dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, àquela altura bem-sucedidas, proporcionavam o pano de fundo para essas previsões. Enraizada nas redondezas, a democracia acabaria por emparedar o Irã. Mas o efeito verdadeiro – e paradoxal – da guerra americana ao terror foi a inversão dessas expectativas.
PREGAÇÃO RADICAL O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad (à dir.), cercado de assessores: uma figura sinistra |
Nos últimos três anos, a escalada nos preços do petróleo inundou o Irã de dólares. A derrubada dos talibãs e de Saddam Hussein varreu do mapa inimigos históricos e, mais importante, livrou da opressão comunidades xiitas suscetíveis à influência dos clérigos de Teerã. Em vários pontos do Oriente Médio, grupos extremistas como o Hezbollah e as Milícias Mahjid recebem patrocínio iraniano – desbragado no discurso e eficazmente encoberto quando se trata de dinheiro e armas. Quanto mais os Estados Unidos se atolam no Iraque, mais crescem a ousadia e a influência do país. Dono de uma consciência histórica que remonta aos esplendores da civilização persa, 2.500 anos atrás, o Irã nunca deixou de desprezar a vizinhança turca e a árabe. Ele sempre se imaginou como potência regional. Agora, alardeia essas credenciais. Pois o fato de prosseguir impávido no desenvolvimento de um programa nuclear, apesar das ameaças do Ocidente e de sanções econômicas que lhe foram impostas pela ONU no fim do ano passado, fez do Irã mais do que um rato que ruge. Neste momento, em instalações subterrâneas na usina de Natanz, 3.000 centrífugas que convertem urânio em combustível atômico estão sendo montadas. Para fins pacíficos, insiste o país – e duvida o Ocidente.
O Irã é o pavio que pode levar o Oriente Médio a uma explosão final. Pode também ser a chave para a estabilidade. A escolha entre as duas opções encontra-se, em boa parte, nas mãos dos Estados Unidos. Nas últimas semanas, os americanos aumentaram seu contingente militar na região do Golfo Pérsico, num aceno hostil a Teerã. Mas, diante do caos que enfrentam no Iraque, é improvável que embarquem num conflito novo. "Não planejamos uma guerra com o Irã", disse Robert Gates, o novo secretário da Defesa americano, no começo de fevereiro. A menos que se espere que Israel, alvo perpétuo das ameaças iranianas, assuma esse papel guerreiro, sobram duas alternativas aos Estados Unidos. Primeiro, sonhar com a queda abrupta do regime fundamentalista. Uma quimera. Segundo, contar com o poder das sanções econômicas e com o fato de que o extremismo de Ahmadinejad não é a face única da política iraniana.
O discurso do presidente em 21 de janeiro ilustra esse fato. Messiânico fervoroso, ele começou como sempre faz: orando pela vinda do 12º Imã – o profeta que anuncia o fim dos tempos na vertente xiita do islamismo. É claro que deu espaço para diatribes. "A posse da tecnologia nuclear é um sonho grandioso, que está mudando nossa posição no mundo", disse Ahmadinejad. "Ao implementarem sanções contra nós, nossos inimigos desejam intimidar nosso povo. Mas eles não podem nos ferir. As sanções são um preço baixo para atingir nosso objetivo." Recém-chegado de uma viagem à América Latina na qual visitou três países – em especial a Venezuela, governada por seu gêmeo autoritário Hugo Chávez –, Ahmadinejad zombou dos Estados Unidos. "Os americanos dizem que nós estamos isolados. Mas nas ruas por onde passei eu ouvi as pessoas gritar o nome do Irã. Bush é quem está isolado. Ele não pode ir aos seus vizinhos como eu fui."
Essas passagens foram, contudo, uma exceção. A ocasião revelou um Ahmadinejad diferente – cauteloso e quase monótono. Desfiando números e estatísticas, ele fez o balanço de 2006 e apresentou propostas para os próximos meses. Tinha um pedido especial: autorização para aumentar em quase 20% os gastos de seu governo. Ahmadinejad precisa do dinheiro porque se elegeu com uma plataforma assistencialista, calcada em bolsas e subsídios. Procurou seduzir o Congresso, mas não foi muito bem-sucedido. Um parlamentar enviou-lhe um bilhete, que ele leu em voz alta: "Quem disse que os seus números são confiáveis?". Ao discutir o custo de vida, Ahmadinejad afirmou que o preço do tomate nos mercados era de 1 dólar por quilo. O plenário o corrigiu aos gritos: "São 3 dólares!". A inflação é um dos flagelos do presidente: está em torno de 16% ao ano, e subindo. Outro deles é o desemprego, que atinge mais de 3 milhões de pessoas.
Aqui cabe um parêntese. A economia emperrada é um legado dos primórdios da República Islâmica. O desprezo de Khomeini pelo tema era notório. "A economia é para jumentos", dizia ele. O Estado iraniano é um leviatã que sufoca a iniciativa privada, seja por meio da burocracia, seja pela competição direta. Estima-se que 25% do comércio do país seja controlado pelas bonyads, fundações que não pagam impostos, atuam em setores que vão da hotelaria à agricultura e, independentes no papel, são na verdade dirigidas pela elite governamental. O setor energético tem debilidades surpreendentes. O Irã possui enormes reservas de petróleo e gás, mas seu sistema de extração e refino está defasado. A produção de petróleo é hoje menor que a de 1974: 4,2 milhões de barris por dia, contra 6,1 milhões de antigamente. Altamente subsidiado, o preço do combustível nos postos iranianos é ínfimo: 10 centavos de dólar por litro. Isso incentiva o contrabando para fora e um consumo interno desenfreado. O país virou uma aberração: um colosso que exporta petróleo mas importa um terço de sua gasolina. Em 2006, foram 6 bilhões de dólares em importações. Se nada mudar, em dez anos o Irã terá toda a sua produção de combustível voltada para o mercado interno. "É um problema extraordinariamente sério. Mas ninguém sabe como abandonar os subsídios e reduzir o consumo sem traumas", diz o vice-ministro do petróleo, Mansour Moizemi.
Os problemas da economia iraniana não foram causados por Ahmadinejad, mas corroem sua popularidade e servem para que seus opositores o fustiguem. Quem são esses opositores? Certamente a classe média das grandes cidades, que o chama de louco nas reuniões privadas. Ou os estudantes e intelectuais, que de vez em quando erguem a voz contra o governo nas universidades e na imprensa, pedindo justiça econômica e liberdade. A verdade melancólica sobre o Irã, no entanto, é que seu aparato de repressão e censura continua implacável. Quando a simples ameaça não serve à dissuasão, ele age. Estima-se que existam hoje 300 pessoas presas por razões políticas. Mais de 100 publicações foram fechadas pelos mesmos motivos nos últimos anos. Por isso, os contendores efetivos de Ahmadinejad são aqueles que já pertencem ao círculo do poder.
Pode-se dizer que, além dos radicais, hoje há duas vertentes no topo da política iraniana: os reformistas, que se encontram em relativo recolhimento desde o fim do segundo mandato presidencial de Mohammed Khatami, em 2005; e os pragmáticos, reunidos em torno de outro ex-presidente, o aiatolá Akbar Hashemi Rafsanjani. Ambos os grupos são em tese mais sensíveis às conseqüências nocivas de sanções prolongadas e mais afeitos à idéia de discussões diplomáticas – desde que em condições de "igualdade". Consultor do Departamento de Estado americano e do próprio presidente Bush, o cientista político Vali Nasr é um dos mais influentes estudiosos do Irã na atualidade. "Mesmo entre os conservadores, as divisões ideológicas e as rivalidades políticas no Irã são reais. Há lutas pelo poder, e delas podem resultar governos mais inclinados a uma negociação com o Ocidente", disse ele a VEJA. A democracia não está prestes a florescer no Irã, mas é possível sonhar com lideranças menos radicais que a de Ahmadinejad. Ainda que envoltas na túnica e no turbante.
DO XÁ À ENERGIA NUCLEAR Os principais momentos da história moderna do Irã, 1967 1979 1980
2005
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O gesto mais comum entre as mulheres iranianas é aquele de arrumar o lenço que, segundo a religião, precisa encobrir seu cabelo. É um gesto mecânico. Mulheres mais velhas talvez o façam por convicção. As jovens, ao menos nas grandes cidades, costumam ter uma relação manhosa com essa peça de vestuário. Elas a usam em ângulos mais generosos, capazes de revelar mechas e franjas. Mas todas se impõem inconscientemente um limite, a partir do qual é preciso ajustá-lo. Em uma célebre entrevista com o aiatolá Khomeini, a jornalista italiana Oriana Fallaci chamou o lenço de "estúpido trapo medieval". Ele é o símbolo onipresente das limitações a que as mulheres são submetidas no islamismo. "Como imposição, o lenço é um incômodo. Mas é possível conviver com ele", disse a VEJA Shirin Ebadi, ativista dos direitos humanos, ganhadora do Nobel da Paz em 2003. "O problema é que há coisas muito piores."
A discriminação contra as mulheres se manifesta de diversas formas no sistema legal iraniano. Elas valem, literalmente, a metade de um homem, no caso de um acidente que resulte no pagamento de indenização. Requerer um divórcio é quase vedado a elas, e nas poucas circunstâncias em que isso é aceito elas precisam abrir mão de direitos como o resgate do dote. O adultério e a prostituição são crimes passíveis de execução pelo apedrejamento. Fora do âmbito do direito civil, posições como a de juiz são vedadas às mulheres. Quando o ex-presidente Khatami tentou incorporar algumas delas ao seu gabinete de ministros, a elite clerical lhe impôs uma forte oposição.
Apesar disso, a luta pelos direitos amplos é vigorosa no Irã. Não são apenas personalidades como Shirin Ebadi que a levam adiante. Mesmo mulheres fiéis ao espírito da revolução islâmica clamam por reformas nesse campo. É o caso de Massoumeh Ebtekar, que usa não apenas lenço, mas xador (a túnica negra que encobre completamente o corpo feminino), e tem em seu currículo a participação na invasão da embaixada americana de Teerã, em 1979. Ou de Jamile Kadivar, igualmente adepta do traje religioso. "Khomeini respondeu às questões que me inquietavam na juventude", diz ela. Quando se trata de direitos femininos, porém, ela é uma reformista incondicional. "Queremos que nos vejam como iguais", afirma. Ela e seu marido, Moshen Kadivar, atravessaram juntos uma tempestade em anos recentes. Kadivar é um clérigo de convicções liberais no contexto iraniano, que foi submetido a uma violenta perseguição pública sob a acusação de que havia se envolvido com uma secretária. "Foi um processo sórdido, mas ele fortaleceu meu casamento e me fortaleceu como mulher", diz ela.
Vários campos de estudo são interditados às mulheres no Irã (enquanto apenas a ginecologia é interditada aos homens). Ainda assim, 64% das vagas universitárias são atualmente preenchidas por elas. Essas jovens, que chegam à idade adulta quase três décadas depois da subida dos aiatolás ao poder e encontram aberta a perspectiva de educação e trabalho, parecem determinadas a garantir que ao menos seu mundo privado não será descrito com a palavra khafegan (traduzível como "situação sufocante"). Elas usam e abusam dos blogs, ainda que apenas para expressar sentimentos. Não dispensam nada que incremente sua auto-estima. A cirurgia plástica do nariz é uma das mais populares no Irã. As academias de ginástica (com segregação de sexos, é óbvio) começam a se tornar uma moda contagiante. Os salões de cabeleireiro são intensamente freqüentados. Nas festas nas casas de amigos, livres do lenço afinal, elas exibem seu cabelo.
Os homens são os escravos
O aiatolá Mohammad Sajjadi é um expoente da ala liberal do clero iraniano. Ex-presidente do tribunal superior do país e atual consultor do chefe do judiciário, ele ganhou fama ao livrar da execução um intelectual processado por fazer críticas ao Islã. Com ironia, Sajjadi diz que não matar pessoas ajuda a manter a paz. "O fundamentalismo é perigoso", diz. Com as credenciais de quem apoiou a revolução na primeira hora, ele critica até o Líder Supremo Ali Khamenei. "Deveríamos negociar com os Estados Unidos. Mas aquele que está no poder discorda", afirma. Sajjadi vive em Qom, centro de estudos que é uma Harvard do islamismo. O personagem expressa os limites do liberalismo num contexto fundamentalista. Enquanto concedia entrevista a VEJA, sua mulher, Marian, permanecia sentada no chão. Ele só pediu que ela se sentasse a seu lado diante de uma pergunta sobre a questão feminina. "Marian é um exemplo de mulher: dirige o carro, cuida da casa e dá aulas", diz Sajjadi. "No Islã, os homens é que são escravos: têm de prover tudo a suas mulheres."
O poder do sexo
As jovens nesta foto exercem uma das atividades mais perigosas do Irã: a prostituição. Pela lei islâmica, esse é um crime punível com a morte por apedrejamento. Por isso, chegar até elas não foi simples. Requereu uma pesquisa com motoristas, empregados de hotel e de restaurantes. A mulher à esquerda fala inglês, tem diploma de psicologia e tornou-se prostituta quando seu marido foi preso. Hoje, é empresária do ramo – e incorporou o cinismo indispensável à atividade. "Decidi ser grande", diz ela, que oferece uma rede de 300 meninas, além de dois homens. "No Irã, a mulher não é ninguém. Mas sexo é poder. Posso obter qualquer coisa de um homem", gaba-se. Com ganhos de até 3.000 dólares por mês, ela já comprou casa e carro e quer abrir um salão de beleza. Só que a eleição do ultraconservador Ahmadinejad afetou os negócios. Diz ela: "Antes, recebíamos até políticos. Agora, os homens estão com medo. Durante os rituais do Ashura, o atendimento foi suspenso. Alguns clientes me abandonariam se trabalhasse nesse período".
A iraniana que ganhou o Nobel
No fim da tarde de 27 de janeiro, a advogada Shirin Ebadi aguardava em seu escritório as famílias de duas jovens que haviam sido presas por fazer campanha contra a discriminação da mulher no Irã. Instalado num prédio despojado em Teerã, o local não dá indícios do renome da ocupante – nem de que ela foi agraciada com mais de 1 milhão de dólares ao obter o Nobel da Paz, em 2003. Shirin foi premiada por sua luta pelos direitos das mulheres e das crianças. Sua trajetória expõe a difícil situação feminina no país. Primeira juíza a ocupar um cargo de chefia numa corte iraniana, Shirin foi destituída com a revolução de 1979. Resolveu então partir para o ativismo – com todos os riscos que isso implica. Chegou a ser presa política e já teve nas mãos um documento do governo que planejava seu assassinato. O Nobel não tornou as coisas mais fáceis. Ela continua a receber ameaças de morte. "Aprendi a esquecer os perigos. Minha família me dá apoio", diz. Para defender as vítimas do regime, ela tenta achar brechas na lei e invoca convenções internacionais. "O problema é que os tribunais nem sempre obedecem aos procedimentos legais", diz. Shirin pede mudanças na Constituição iraniana – um tema tabu. Gostaria de ver abolido o Conselho dos Guardiães, cuja principal incumbência é aprovar candidaturas eleitorais. Em 2005, mais de 1.000 políticos queriam concorrer a presidente. Só oito foram autorizados.
Estrela sob censura
No Irã, os anúncios publicitários são um campo vedado às mulheres. A única exceção são as propagandas de filmes e programas de TV. Nenhuma face feminina é mais estampada nelas que a da belíssima Niki Karimi. Aos 35 anos, ela é a atriz mais celebrada do Irã. Além de estrelar dramas e comédias, é diretora. Iniciou-se no ofício como assistente – e amante, segundo as más-línguas – de Abbas Kiarostami, o mais conhecido cineasta iraniano. Herdou dele o gosto pelos planos longos e seqüências silenciosas, além de certa crítica social. O que, em seu país, é sinônimo de problema. Seus dois últimos trabalhos, já exibidos no exterior, só neste ano devem ser lançados no Irã. Motivo: o governo exigiu que fossem totalmente remontados. "É frustrante. Já vivo me autocensurando. E depois preciso deformar o filme", disse a VEJA no set de sua nova produção como atriz, A Segunda Mulher.
Estranhos no ninho
Os iranianos são uma das mais ricas e instruídas
comunidades estrangeiras da Califórnia.
Mas preferem passar despercebidos
Isabela Boscov, de Los Angeles
Monica Almeida/NYT |
A VIDA EM "TEERANGELES" Shahram Homayoun, diretor de uma estação que transmite da Califórnia para o Irã: política, só se for para se distanciar da terra natal |
Quando um estrangeiro pensa em Beverly Hills, imagina mansões de astros de cinema nas encostas dessa riquíssima cidade dentro da metrópole. Para os próprios angelenos, porém, Beverly Hills hoje é sinônimo de uma das comunidades mais singulares dos Estados Unidos – aquela formada pelos imigrantes iranianos e seus descendentes. Um em cada cinco moradores de Beverly Hills é de origem iraniana. Um dos membros do conselho de arquitetura da municipalidade, Hamid Gabbay, é um iraniano que, depois de estudar na Itália e morar na França, escolheu a Califórnia como destino ao sair correndo de Teerã em 1978, com a mulher e os dois filhos, para escapar à revolução islâmica que se aproximava. Hamid foi um dos defensores de uma legislação que provocou algum ranger de dentes: aquela que proíbe os chamados "palácios persas", mansões que combinam estilos a esmo e devoram os recuos laterais, colando-se às casas vizinhas. Hamid não gosta dessas edificações, mas gosta menos ainda do termo "palácio persa". "Tudo o que ele tem a sugerir sobre nós, iranianos, são preconceitos", justifica o arquiteto, um homem elegante e afável, que recebeu VEJA em sua igualmente elegante casa modernista em, claro, Beverly Hills.
Dos paquistaneses que foram para a Inglaterra aos albaneses que hoje se subempregam na Europa, os imigrantes costumam chegar a seus novos lares em situação de pobreza e desvantagem. Os Estados Unidos, porém, abrigam duas exceções notáveis à regra: a comunidade cubana e a iraniana, estabelecidas por elites que fugiram de revoluções hostis a elas. Ambas foram engrossadas por várias outras levas de compatriotas menos privilegiados. Resguardam seu peso econômico e cultural, e cresceram em números. Os que se referem aos iranianos são incertos, mas estima-se que eles formem 8% da população de Los Angeles – tanto que a cidade já leva o apelido de "Teerangeles". Mas, enquanto os cubanos ambicionam força política, os iranianos fazem de tudo para não se destacar da paisagem. Eles são o grupo mais instruído do país: têm cinco vezes mais doutorados do que a média da população, e renda per capita também superior. São, ainda, muito coesos. Como no Irã pré-revolução, incluem judeus, muçulmanos, cristãos e adeptos da religião bahai. Mas convivem livremente e consideram-se antes de tudo iranianos – ou persas, como muitos preferem ser chamados, para defletir as paranóias que o nome "Irã" hoje desperta.
Eis aí a razão pela qual a comunidade não corteja a influência: ser iraniano, no Irã ou fora dele, não é fácil. Da invasão da embaixada americana em Teerã, em 1979, às atuais aventuras atômicas do presidente Mahmoud Ahmadinejad, o Irã é um ímã de desconfiança. As únicas atividades políticas que os iranianos dos Estados Unidos não temem são as que visam a dissociá-los dessa imagem instável, como as manifestações contra o governo de Teerã ou os noticiários que televisões e rádios da Califórnia transmitem para lá, com uma visão alternativa dos fatos. Um dos poucos que venceram esse temor da política é Jimmy Delshad, vice-prefeito de Beverly Hills. Um iraniano que, em 1958, deixou seu país com 100 dólares no bolso e enriqueceu na área de tecnologia, Delshad fez trabalho de formiguinha para se eleger. Bateu de porta em porta, persuadindo seus compatriotas a se registrar como eleitores. "Iranianos morrem de medo de listas", explicou ele. "No Irã, ter o nome numa lista, seja do que for, é sinônimo de encrenca."
Trabalho de formiguinha é algo de que Yassi Gabbay, o irmão mais velho de Hamid, entende bem. Até 1979, Yassi era o arquiteto favorito do xá Reza Pahlevi e dono do maior escritório de projetos do país. Por causa de sua empresa, só saiu do Irã na 25ª hora. Perdeu tudo. Em seus primeiros anos nos Estados Unidos, implorou por empregos que estagiários recusariam, em troca de salário mínimo. Yassi estourou ao construir uma casa modernista em Beverly Hills. Hoje, divide com o irmão um ateliê no ponto mais valorizado do Wilshire Boulevard, mas não se livrou da ambivalência acerca de sua trajetória. "É como se eu tivesse vivido duas vidas. Esta, a segunda, é a melhor para a minha família. Foi na primeira, porém, que eu me realizei."
Yassi é um talento e um homem de modos tão encantadores quanto reservados – razões que explicam sua larga clientela americana. Para muitos de seus conterrâneos, porém, adaptar-se é um périplo. Homa Mahmoudi, a primeira iraniana a se graduar em psicologia nos Estados Unidos e ex-chefe da divisão no hospital Cedars-Sinai, tem experiência nessa seara, embora não em primeira mão. Homa emigrou na adolescência, casou-se com um americano (de quem se divorciou) e é da religião bahai, que não supõe desníveis entre homens e mulheres. Mas, de tanto atender iranianos perplexos com as novas liberdades e códigos, bolou seminários nos quais ensina, por exemplo, a noção de "espaço pessoal" – ou seja, a nunca se aproximar demais das pessoas. Para um povo orgulhoso de sua hospitalidade ampla (e muito respeitosa), não é uma lição fácil. Homa tem um exemplo disso em casa. Seu filho namorou mulheres de todas as cores e origens. Há alguns meses, conheceu uma filha de iranianos e se apaixonou perdidamente. Concluiu, além disso, que a afinidade cultural é um ingrediente crucial do romance, que já fala em tornar permanente. Diz Homa: "Veja só. Meu filho, afinal, também é iraniano. Por essa eu não esperava".
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