Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 10, 2007

Irã: a chave da guerra e da paz no Oriente Médio



Exclusivo on-line
Vídeo e slideshows
Uma nação incendiária

VEJA visitou o Irã, país que pode levar o Oriente Médio
a uma explosão ou ser a chave para sua estabilidade


Carlos Graieb, com fotos de Paulo Vitale, de Teerã

A ALMA XIITA
A celebração do Ashura, na cidade de Qom: fogo e martírio


Como quase todos os prédios da capital, Teerã, o Parlamento iraniano não chama atenção pela arquitetura. De fora, é uma construção que se confunde na paisagem urbana. Mas seu plenário é outra história. Decorado em verde, a cor do islamismo, ele exibe dois retratos gigantescos. Um representa o aiatolá Khomeini, mentor da revolução islâmica que, em pleno século XX, impôs a um Irã laico e com chances de se modernizar a treva da teocracia. Ao lado se vê a imagem de seu sucessor, Ali Khamenei, líder supremo da nação desde 1989. Nas galerias do fundo, dezenas de mártires políticos são homenageados. Em 21 de janeiro, três dias antes de seus antípodas americanos em Washington, os congressistas iranianos se reuniram para ouvir no Parlamento uma espécie de Discurso sobre o Estado da União. O orador era uma das figuras mais incendiárias da política contemporânea – o presidente Mahmoud Ahmadinejad.

Desde sua eleição, em meados de 2005, Ahmadinejad desconcerta o mundo com sua retórica agressiva. Ele fala sobre a transformação do Irã numa potência atômica, dispara frases ultrajantes a respeito da aniquilação de Israel e da inexistência do holocausto na II Guerra e viaja pelo mundo empunhando a bandeira do antiamericanismo. Seria reconfortante descartá-lo como um bufão sinistro. Mas isso não é correto. Ahmadinejad é o beneficiário e o símbolo da mudança inesperada que, 28 anos depois da revolução islâmica, fez do Irã, mais uma vez, um centro de tensão mundial.

Em meados de 2003, depois da queda de Saddam Hussein no Iraque, apenas dois destinos pareciam reservados ao país dos aiatolás. Num cenário, a ditadura religiosa conseguiria sobreviver, mas condenada ao isolamento, como pária internacional. Noutro, as pressões de uma população majoritariamente jovem resultariam no colapso do autoritarismo e na abertura do país. As incursões militares dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, àquela altura bem-sucedidas, proporcionavam o pano de fundo para essas previsões. Enraizada nas redondezas, a democracia acabaria por emparedar o Irã. Mas o efeito verdadeiro – e paradoxal – da guerra americana ao terror foi a inversão dessas expectativas.

PREGAÇÃO RADICAL
O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad (à dir.), cercado de assessores: uma figura sinistra

Nos últimos três anos, a escalada nos preços do petróleo inundou o Irã de dólares. A derrubada dos talibãs e de Saddam Hussein varreu do mapa inimigos históricos e, mais importante, livrou da opressão comunidades xiitas suscetíveis à influência dos clérigos de Teerã. Em vários pontos do Oriente Médio, grupos extremistas como o Hezbollah e as Milícias Mahjid recebem patrocínio iraniano – desbragado no discurso e eficazmente encoberto quando se trata de dinheiro e armas. Quanto mais os Estados Unidos se atolam no Iraque, mais crescem a ousadia e a influência do país. Dono de uma consciência histórica que remonta aos esplendores da civilização persa, 2.500 anos atrás, o Irã nunca deixou de desprezar a vizinhança turca e a árabe. Ele sempre se imaginou como potência regional. Agora, alardeia essas credenciais. Pois o fato de prosseguir impávido no desenvolvimento de um programa nuclear, apesar das ameaças do Ocidente e de sanções econômicas que lhe foram impostas pela ONU no fim do ano passado, fez do Irã mais do que um rato que ruge. Neste momento, em instalações subterrâneas na usina de Natanz, 3.000 centrífugas que convertem urânio em combustível atômico estão sendo montadas. Para fins pacíficos, insiste o país – e duvida o Ocidente.

O Irã é o pavio que pode levar o Oriente Médio a uma explosão final. Pode também ser a chave para a estabilidade. A escolha entre as duas opções encontra-se, em boa parte, nas mãos dos Estados Unidos. Nas últimas semanas, os americanos aumentaram seu contingente militar na região do Golfo Pérsico, num aceno hostil a Teerã. Mas, diante do caos que enfrentam no Iraque, é improvável que embarquem num conflito novo. "Não planejamos uma guerra com o Irã", disse Robert Gates, o novo secretário da Defesa americano, no começo de fevereiro. A menos que se espere que Israel, alvo perpétuo das ameaças iranianas, assuma esse papel guerreiro, sobram duas alternativas aos Estados Unidos. Primeiro, sonhar com a queda abrupta do regime fundamentalista. Uma quimera. Segundo, contar com o poder das sanções econômicas e com o fato de que o extremismo de Ahmadinejad não é a face única da política iraniana.

O discurso do presidente em 21 de janeiro ilustra esse fato. Messiânico fervoroso, ele começou como sempre faz: orando pela vinda do 12º Imã – o profeta que anuncia o fim dos tempos na vertente xiita do islamismo. É claro que deu espaço para diatribes. "A posse da tecnologia nuclear é um sonho grandioso, que está mudando nossa posição no mundo", disse Ahmadinejad. "Ao implementarem sanções contra nós, nossos inimigos desejam intimidar nosso povo. Mas eles não podem nos ferir. As sanções são um preço baixo para atingir nosso objetivo." Recém-chegado de uma viagem à América Latina na qual visitou três países – em especial a Venezuela, governada por seu gêmeo autoritário Hugo Chávez –, Ahmadinejad zombou dos Estados Unidos. "Os americanos dizem que nós estamos isolados. Mas nas ruas por onde passei eu ouvi as pessoas gritar o nome do Irã. Bush é quem está isolado. Ele não pode ir aos seus vizinhos como eu fui."

Essas passagens foram, contudo, uma exceção. A ocasião revelou um Ahmadinejad diferente – cauteloso e quase monótono. Desfiando números e estatísticas, ele fez o balanço de 2006 e apresentou propostas para os próximos meses. Tinha um pedido especial: autorização para aumentar em quase 20% os gastos de seu governo. Ahmadinejad precisa do dinheiro porque se elegeu com uma plataforma assistencialista, calcada em bolsas e subsídios. Procurou seduzir o Congresso, mas não foi muito bem-sucedido. Um parlamentar enviou-lhe um bilhete, que ele leu em voz alta: "Quem disse que os seus números são confiáveis?". Ao discutir o custo de vida, Ahmadinejad afirmou que o preço do tomate nos mercados era de 1 dólar por quilo. O plenário o corrigiu aos gritos: "São 3 dólares!". A inflação é um dos flagelos do presidente: está em torno de 16% ao ano, e subindo. Outro deles é o desemprego, que atinge mais de 3 milhões de pessoas.

Aqui cabe um parêntese. A economia emperrada é um legado dos primórdios da República Islâmica. O desprezo de Khomeini pelo tema era notório. "A economia é para jumentos", dizia ele. O Estado iraniano é um leviatã que sufoca a iniciativa privada, seja por meio da burocracia, seja pela competição direta. Estima-se que 25% do comércio do país seja controlado pelas bonyads, fundações que não pagam impostos, atuam em setores que vão da hotelaria à agricultura e, independentes no papel, são na verdade dirigidas pela elite governamental. O setor energético tem debilidades surpreendentes. O Irã possui enormes reservas de petróleo e gás, mas seu sistema de extração e refino está defasado. A produção de petróleo é hoje menor que a de 1974: 4,2 milhões de barris por dia, contra 6,1 milhões de antigamente. Altamente subsidiado, o preço do combustível nos postos iranianos é ínfimo: 10 centavos de dólar por litro. Isso incentiva o contrabando para fora e um consumo interno desenfreado. O país virou uma aberração: um colosso que exporta petróleo mas importa um terço de sua gasolina. Em 2006, foram 6 bilhões de dólares em importações. Se nada mudar, em dez anos o Irã terá toda a sua produção de combustível voltada para o mercado interno. "É um problema extraordinariamente sério. Mas ninguém sabe como abandonar os subsídios e reduzir o consumo sem traumas", diz o vice-ministro do petróleo, Mansour Moizemi.

Os problemas da economia iraniana não foram causados por Ahmadinejad, mas corroem sua popularidade e servem para que seus opositores o fustiguem. Quem são esses opositores? Certamente a classe média das grandes cidades, que o chama de louco nas reuniões privadas. Ou os estudantes e intelectuais, que de vez em quando erguem a voz contra o governo nas universidades e na imprensa, pedindo justiça econômica e liberdade. A verdade melancólica sobre o Irã, no entanto, é que seu aparato de repressão e censura continua implacável. Quando a simples ameaça não serve à dissuasão, ele age. Estima-se que existam hoje 300 pessoas presas por razões políticas. Mais de 100 publicações foram fechadas pelos mesmos motivos nos últimos anos. Por isso, os contendores efetivos de Ahmadinejad são aqueles que já pertencem ao círculo do poder.

Pode-se dizer que, além dos radicais, hoje há duas vertentes no topo da política iraniana: os reformistas, que se encontram em relativo recolhimento desde o fim do segundo mandato presidencial de Mohammed Khatami, em 2005; e os pragmáticos, reunidos em torno de outro ex-presidente, o aiatolá Akbar Hashemi Rafsanjani. Ambos os grupos são em tese mais sensíveis às conseqüências nocivas de sanções prolongadas e mais afeitos à idéia de discussões diplomáticas – desde que em condições de "igualdade". Consultor do Departamento de Estado americano e do próprio presidente Bush, o cientista político Vali Nasr é um dos mais influentes estudiosos do Irã na atualidade. "Mesmo entre os conservadores, as divisões ideológicas e as rivalidades políticas no Irã são reais. Há lutas pelo poder, e delas podem resultar governos mais inclinados a uma negociação com o Ocidente", disse ele a VEJA. A democracia não está prestes a florescer no Irã, mas é possível sonhar com lideranças menos radicais que a de Ahmadinejad. Ainda que envoltas na túnica e no turbante.

DO XÁ À ENERGIA NUCLEAR

Os principais momentos da história moderna do Irã,
desde antes da revolução que fez dele uma teocracia

1967
O menino Cyrus Reza é coroado sucessor de seu pai, o xá Reza Pahlevi – mas nunca chegará a ser xá. Reza Pahlevi buscou aproximar o país do modo de vida ocidental. Mas o autoritarismo de seu governo e seu estilo de vida suntuoso só contribuíram para que os iranianos associassem o Ocidente à idéia de corrupção

1979
Exilado por Reza Pahlevi desde 1964, o aiatolá Khomeini voltou ao país em triunfo, nos braços da revolução xiita que derrubou o xá. O novo líder do Irã deixou seus propósitos claros desde o início: purgar o país de qualquer influência ocidental. Os Estados Unidos passam a ser considerados o "Grande Satã"

1980
Em novembro de 1979, uma turba de estudantes xiitas invadiu a embaixada americana em Teerã. Aprisionaram 52 reféns por catorze meses. O presidente americano Jimmy Carter ordenou uma operação de resgate, em 1980, que acabou em desastre, com a queda de um helicóptero – fiasco que contribuiu para minar a campanha de Carter à reeleição. Os reféns foram libertados no dia em que Ronald Reagan tomava posse


AP


1981

Em 1980, aproveitando-se da confusão que se seguiu à revolução islâmica, o Iraque invadiu os territórios ricos em petróleo do oeste iraniano. No ano seguinte, o Irã recuperou suas terras e lançou uma contra-ofensiva, na esperança de derrubar Saddam Hussein e expandir a área de influência xiita. A guerra Irã-Iraque arrastou-se por oito anos e custou a vida de mais de 1 milhão de pessoas


2005
O engenheiro Mahmoud Ahmadinejad (à dir. na foto) foi eleito presidente nesse ano, recolocando o país nos trilhos do fanatismo mais intransigente. A imagem ao lado é representativa de todas as faces do poder iraniano. O aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (à esq.), presidente de 1989 a 1997 e candidato derrotado em 2005, foi um líder pragmático, que manteve a linha dura religiosa mas promoveu uma certa abertura econômica. Mohammed Khatami, a seu lado, presidente de 1997 a 2005, tentou implementar reformas, mas foi tolhido pelos aiatolás. No centro da foto, o líder supremo do Irã: Ali Khamenei, sucessor do aiatolá Khomeini


Behrouz Mehri/AFP


2007

Orgulho do falastrão Ahmadinejad, o programa nuclear do Irã acrescentou uma nova crise à conturbada situação do Oriente Médio. Apesar das pressões internacionais e das ameaças dos Estados Unidos (exauridos pela guerra no Iraque), o Irã se recusa a interromper o enriquecimento de urânio e não aceita fiscalização internacional. A alegação oficial é que o programa tem fins energéticos. Mas a cooperação do Irã com a Coréia do Norte no desenvolvimento de mísseis não deixa dúvidas: os aiatolás querem a bomba

Com lenço, sem documento

O gesto mais comum entre as mulheres iranianas é aquele de arrumar o lenço que, segundo a religião, precisa encobrir seu cabelo. É um gesto mecânico. Mulheres mais velhas talvez o façam por convicção. As jovens, ao menos nas grandes cidades, costumam ter uma relação manhosa com essa peça de vestuário. Elas a usam em ângulos mais generosos, capazes de revelar mechas e franjas. Mas todas se impõem inconscientemente um limite, a partir do qual é preciso ajustá-lo. Em uma célebre entrevista com o aiatolá Khomeini, a jornalista italiana Oriana Fallaci chamou o lenço de "estúpido trapo medieval". Ele é o símbolo onipresente das limitações a que as mulheres são submetidas no islamismo. "Como imposição, o lenço é um incômodo. Mas é possível conviver com ele", disse a VEJA Shirin Ebadi, ativista dos direitos humanos, ganhadora do Nobel da Paz em 2003. "O problema é que há coisas muito piores."

A discriminação contra as mulheres se manifesta de diversas formas no sistema legal iraniano. Elas valem, literalmente, a metade de um homem, no caso de um acidente que resulte no pagamento de indenização. Requerer um divórcio é quase vedado a elas, e nas poucas circunstâncias em que isso é aceito elas precisam abrir mão de direitos como o resgate do dote. O adultério e a prostituição são crimes passíveis de execução pelo apedrejamento. Fora do âmbito do direito civil, posições como a de juiz são vedadas às mulheres. Quando o ex-presidente Khatami tentou incorporar algumas delas ao seu gabinete de ministros, a elite clerical lhe impôs uma forte oposição.

Apesar disso, a luta pelos direitos amplos é vigorosa no Irã. Não são apenas personalidades como Shirin Ebadi que a levam adiante. Mesmo mulheres fiéis ao espírito da revolução islâmica clamam por reformas nesse campo. É o caso de Massoumeh Ebtekar, que usa não apenas lenço, mas xador (a túnica negra que encobre completamente o corpo feminino), e tem em seu currículo a participação na invasão da embaixada americana de Teerã, em 1979. Ou de Jamile Kadivar, igualmente adepta do traje religioso. "Khomeini respondeu às questões que me inquietavam na juventude", diz ela. Quando se trata de direitos femininos, porém, ela é uma reformista incondicional. "Queremos que nos vejam como iguais", afirma. Ela e seu marido, Moshen Kadivar, atravessaram juntos uma tempestade em anos recentes. Kadivar é um clérigo de convicções liberais no contexto iraniano, que foi submetido a uma violenta perseguição pública sob a acusação de que havia se envolvido com uma secretária. "Foi um processo sórdido, mas ele fortaleceu meu casamento e me fortaleceu como mulher", diz ela.

Vários campos de estudo são interditados às mulheres no Irã (enquanto apenas a ginecologia é interditada aos homens). Ainda assim, 64% das vagas universitárias são atualmente preenchidas por elas. Essas jovens, que chegam à idade adulta quase três décadas depois da subida dos aiatolás ao poder e encontram aberta a perspectiva de educação e trabalho, parecem determinadas a garantir que ao menos seu mundo privado não será descrito com a palavra khafegan (traduzível como "situação sufocante"). Elas usam e abusam dos blogs, ainda que apenas para expressar sentimentos. Não dispensam nada que incremente sua auto-estima. A cirurgia plástica do nariz é uma das mais populares no Irã. As academias de ginástica (com segregação de sexos, é óbvio) começam a se tornar uma moda contagiante. Os salões de cabeleireiro são intensamente freqüentados. Nas festas nas casas de amigos, livres do lenço afinal, elas exibem seu cabelo.

Os homens são os escravos

O aiatolá Mohammad Sajjadi é um expoente da ala liberal do clero iraniano. Ex-presidente do tribunal superior do país e atual consultor do chefe do judiciário, ele ganhou fama ao livrar da execução um intelectual processado por fazer críticas ao Islã. Com ironia, Sajjadi diz que não matar pessoas ajuda a manter a paz. "O fundamentalismo é perigoso", diz. Com as credenciais de quem apoiou a revolução na primeira hora, ele critica até o Líder Supremo Ali Khamenei. "Deveríamos negociar com os Estados Unidos. Mas aquele que está no poder discorda", afirma. Sajjadi vive em Qom, centro de estudos que é uma Harvard do islamismo. O personagem expressa os limites do liberalismo num contexto fundamentalista. Enquanto concedia entrevista a VEJA, sua mulher, Marian, permanecia sentada no chão. Ele só pediu que ela se sentasse a seu lado diante de uma pergunta sobre a questão feminina. "Marian é um exemplo de mulher: dirige o carro, cuida da casa e dá aulas", diz Sajjadi. "No Islã, os homens é que são escravos: têm de prover tudo a suas mulheres."

O poder do sexo

As jovens nesta foto exercem uma das atividades mais perigosas do Irã: a prostituição. Pela lei islâmica, esse é um crime punível com a morte por apedrejamento. Por isso, chegar até elas não foi simples. Requereu uma pesquisa com motoristas, empregados de hotel e de restaurantes. A mulher à esquerda fala inglês, tem diploma de psicologia e tornou-se prostituta quando seu marido foi preso. Hoje, é empresária do ramo – e incorporou o cinismo indispensável à atividade. "Decidi ser grande", diz ela, que oferece uma rede de 300 meninas, além de dois homens. "No Irã, a mulher não é ninguém. Mas sexo é poder. Posso obter qualquer coisa de um homem", gaba-se. Com ganhos de até 3.000 dólares por mês, ela já comprou casa e carro e quer abrir um salão de beleza. Só que a eleição do ultraconservador Ahmadinejad afetou os negócios. Diz ela: "Antes, recebíamos até políticos. Agora, os homens estão com medo. Durante os rituais do Ashura, o atendimento foi suspenso. Alguns clientes me abandonariam se trabalhasse nesse período".

A iraniana que ganhou o Nobel

No fim da tarde de 27 de janeiro, a advogada Shirin Ebadi aguardava em seu escritório as famílias de duas jovens que haviam sido presas por fazer campanha contra a discriminação da mulher no Irã. Instalado num prédio despojado em Teerã, o local não dá indícios do renome da ocupante – nem de que ela foi agraciada com mais de 1 milhão de dólares ao obter o Nobel da Paz, em 2003. Shirin foi premiada por sua luta pelos direitos das mulheres e das crianças. Sua trajetória expõe a difícil situação feminina no país. Primeira juíza a ocupar um cargo de chefia numa corte iraniana, Shirin foi destituída com a revolução de 1979. Resolveu então partir para o ativismo – com todos os riscos que isso implica. Chegou a ser presa política e já teve nas mãos um documento do governo que planejava seu assassinato. O Nobel não tornou as coisas mais fáceis. Ela continua a receber ameaças de morte. "Aprendi a esquecer os perigos. Minha família me dá apoio", diz. Para defender as vítimas do regime, ela tenta achar brechas na lei e invoca convenções internacionais. "O problema é que os tribunais nem sempre obedecem aos procedimentos legais", diz. Shirin pede mudanças na Constituição iraniana – um tema tabu. Gostaria de ver abolido o Conselho dos Guardiães, cuja principal incumbência é aprovar candidaturas eleitorais. Em 2005, mais de 1.000 políticos queriam concorrer a presidente. Só oito foram autorizados.

Estrela sob censura

No Irã, os anúncios publicitários são um campo vedado às mulheres. A única exceção são as propagandas de filmes e programas de TV. Nenhuma face feminina é mais estampada nelas que a da belíssima Niki Karimi. Aos 35 anos, ela é a atriz mais celebrada do Irã. Além de estrelar dramas e comédias, é diretora. Iniciou-se no ofício como assistente – e amante, segundo as más-línguas – de Abbas Kiarostami, o mais conhecido cineasta iraniano. Herdou dele o gosto pelos planos longos e seqüências silenciosas, além de certa crítica social. O que, em seu país, é sinônimo de problema. Seus dois últimos trabalhos, já exibidos no exterior, só neste ano devem ser lançados no Irã. Motivo: o governo exigiu que fossem totalmente remontados. "É frustrante. Já vivo me autocensurando. E depois preciso deformar o filme", disse a VEJA no set de sua nova produção como atriz, A Segunda Mulher.

Estranhos no ninho

Os iranianos são uma das mais ricas e instruídas
comunidades estrangeiras da Califórnia.
Mas preferem passar despercebidos


Isabela Boscov, de Los Angeles


Monica Almeida/NYT
A VIDA EM "TEERANGELES"
Shahram Homayoun, diretor de uma estação que transmite da Califórnia para o Irã: política, só se for para se distanciar da terra natal


Quando um estrangeiro pensa em Beverly Hills, imagina mansões de astros de cinema nas encostas dessa riquíssima cidade dentro da metrópole. Para os próprios angelenos, porém, Beverly Hills hoje é sinônimo de uma das comunidades mais singulares dos Estados Unidos – aquela formada pelos imigrantes iranianos e seus descendentes. Um em cada cinco moradores de Beverly Hills é de origem iraniana. Um dos membros do conselho de arquitetura da municipalidade, Hamid Gabbay, é um iraniano que, depois de estudar na Itália e morar na França, escolheu a Califórnia como destino ao sair correndo de Teerã em 1978, com a mulher e os dois filhos, para escapar à revolução islâmica que se aproximava. Hamid foi um dos defensores de uma legislação que provocou algum ranger de dentes: aquela que proíbe os chamados "palácios persas", mansões que combinam estilos a esmo e devoram os recuos laterais, colando-se às casas vizinhas. Hamid não gosta dessas edificações, mas gosta menos ainda do termo "palácio persa". "Tudo o que ele tem a sugerir sobre nós, iranianos, são preconceitos", justifica o arquiteto, um homem elegante e afável, que recebeu VEJA em sua igualmente elegante casa modernista em, claro, Beverly Hills.

Dos paquistaneses que foram para a Inglaterra aos albaneses que hoje se subempregam na Europa, os imigrantes costumam chegar a seus novos lares em situação de pobreza e desvantagem. Os Estados Unidos, porém, abrigam duas exceções notáveis à regra: a comunidade cubana e a iraniana, estabelecidas por elites que fugiram de revoluções hostis a elas. Ambas foram engrossadas por várias outras levas de compatriotas menos privilegiados. Resguardam seu peso econômico e cultural, e cresceram em números. Os que se referem aos iranianos são incertos, mas estima-se que eles formem 8% da população de Los Angeles – tanto que a cidade já leva o apelido de "Teerangeles". Mas, enquanto os cubanos ambicionam força política, os iranianos fazem de tudo para não se destacar da paisagem. Eles são o grupo mais instruído do país: têm cinco vezes mais doutorados do que a média da população, e renda per capita também superior. São, ainda, muito coesos. Como no Irã pré-revolução, incluem judeus, muçulmanos, cristãos e adeptos da religião bahai. Mas convivem livremente e consideram-se antes de tudo iranianos – ou persas, como muitos preferem ser chamados, para defletir as paranóias que o nome "Irã" hoje desperta.

Eis aí a razão pela qual a comunidade não corteja a influência: ser iraniano, no Irã ou fora dele, não é fácil. Da invasão da embaixada americana em Teerã, em 1979, às atuais aventuras atômicas do presidente Mahmoud Ahmadinejad, o Irã é um ímã de desconfiança. As únicas atividades políticas que os iranianos dos Estados Unidos não temem são as que visam a dissociá-los dessa imagem instável, como as manifestações contra o governo de Teerã ou os noticiários que televisões e rádios da Califórnia transmitem para lá, com uma visão alternativa dos fatos. Um dos poucos que venceram esse temor da política é Jimmy Delshad, vice-prefeito de Beverly Hills. Um iraniano que, em 1958, deixou seu país com 100 dólares no bolso e enriqueceu na área de tecnologia, Delshad fez trabalho de formiguinha para se eleger. Bateu de porta em porta, persuadindo seus compatriotas a se registrar como eleitores. "Iranianos morrem de medo de listas", explicou ele. "No Irã, ter o nome numa lista, seja do que for, é sinônimo de encrenca."

Trabalho de formiguinha é algo de que Yassi Gabbay, o irmão mais velho de Hamid, entende bem. Até 1979, Yassi era o arquiteto favorito do xá Reza Pahlevi e dono do maior escritório de projetos do país. Por causa de sua empresa, só saiu do Irã na 25ª hora. Perdeu tudo. Em seus primeiros anos nos Estados Unidos, implorou por empregos que estagiários recusariam, em troca de salário mínimo. Yassi estourou ao construir uma casa modernista em Beverly Hills. Hoje, divide com o irmão um ateliê no ponto mais valorizado do Wilshire Boulevard, mas não se livrou da ambivalência acerca de sua trajetória. "É como se eu tivesse vivido duas vidas. Esta, a segunda, é a melhor para a minha família. Foi na primeira, porém, que eu me realizei."

Yassi é um talento e um homem de modos tão encantadores quanto reservados – razões que explicam sua larga clientela americana. Para muitos de seus conterrâneos, porém, adaptar-se é um périplo. Homa Mahmoudi, a primeira iraniana a se graduar em psicologia nos Estados Unidos e ex-chefe da divisão no hospital Cedars-Sinai, tem experiência nessa seara, embora não em primeira mão. Homa emigrou na adolescência, casou-se com um americano (de quem se divorciou) e é da religião bahai, que não supõe desníveis entre homens e mulheres. Mas, de tanto atender iranianos perplexos com as novas liberdades e códigos, bolou seminários nos quais ensina, por exemplo, a noção de "espaço pessoal" – ou seja, a nunca se aproximar demais das pessoas. Para um povo orgulhoso de sua hospitalidade ampla (e muito respeitosa), não é uma lição fácil. Homa tem um exemplo disso em casa. Seu filho namorou mulheres de todas as cores e origens. Há alguns meses, conheceu uma filha de iranianos e se apaixonou perdidamente. Concluiu, além disso, que a afinidade cultural é um ingrediente crucial do romance, que já fala em tornar permanente. Diz Homa: "Veja só. Meu filho, afinal, também é iraniano. Por essa eu não esperava".

A dupla vida do Irã

CRIANÇAS DE ALÁ
Bebês vestidos como o filho do imã Hussein, figura central no xiismo, descansam enquanto seus pais se flagelam (sombra): primado do fanatismo


O inverno em janeiro foi ameno no Irã e adelgaçou a cobertura de neve nas montanhas do norte. Mas não o suficiente para interromper a temporada de esqui nas estações de Darband Sar e Dizin. É para elas que os jovens de classe média e classe alta, moradores de Teerã, fogem em busca de descontração nos dias de folga. Dizin fica a cerca de uma hora e meia de carro da capital. O caminho é cortado por ravinas espetaculares. Na estrada há restaurantes e casas de chá onde se pode usar narguilé (ou hubble-bubble, como dizem os adolescentes). O narguilé é um cachimbo em que a fumaça é filtrada pela água antes de chegar à boca. Grupos de adolescentes se juntam ao redor da infusão para conversar.

Em Teerã, a frota de automóveis tem idade média de duas décadas. Na montanha, os carros estacionados em frente ao teleférico de Dizin são novos em folha. Há enormes outdoors da Benetton no local. A grife italiana inaugurou recentemente um escritório no Irã, dirigido por Caio Milani, um executivo de origem brasileira. Como acontece com outras marcas, as roupas da Benetton eram objeto de intenso contrabando a partir da Turquia. A empresa decidiu atacar esse comércio ilegal e abordar diretamente o consumidor iraniano. Cerca de 67% da população local tem menos de 25 anos. "Boa parte desse público é ávida por moda", diz Milani. A fila para a compra de ingressos confirma essa avaliação. As garotas usam roupas coloridas e maquiagem elaborada. Substituem o lenço religioso, obrigatório nas cidades, por gorros modernos. Os rapazes têm roupa larga e cabelo modelado com gel – exceto a tribo dos roqueiros, que usa barba cheia, em clara paródia dos cantores de música religiosa.

A popularidade do esqui é reflexo da falta de alternativas de lazer nas ruas das cidades. Diversão no Irã é um negócio caseiro. Em casa, os jovens compram de contrabandistas, que fazem entregas na porta, o álcool banido pela lei islâmica. Eles também ouvem "música proibida" – categoria na qual se incluem tanto o rap de Eminem e 50 Cent quanto o pop romântico de iranianos radicados na Europa. Nas ruas é preciso obedecer ao código de vestimenta e conduta imposto pelas autoridades. O clima já foi mais repressivo, mas sempre é possível esbarrar numa zelosa patrulha bassiji – a pegajosa polícia voluntária. Os bassiji também estão presentes nas estações de esqui. Mas é fácil despistá-los na neve.

O ISLÃ NA NEVE
Jovens esquiam na estação de Dizin, nas proximidades de Teerã: em busca de liberdade, longe da vigilância das patrulhas religiosas

Entre os freqüentadores de Dizin, VEJA encontrou um personagem que, dois dias mais tarde, se mostraria disposto a acompanhá-la em um contexto diferente. Para falar com liberdade, ele pediu para ser identificado com um nome falso. Akbar, de 24 anos, pertence a uma fatia afluente da juventude iraniana, que detesta Ahmadinejad e votou no liberal Mostafa Moin nas eleições presidenciais de 2005 (Moin pertence ao partido Mosharekat, ou Participação, que tem seus representantes sistematicamente barrados das campanhas políticas pelo Conselho dos Guardiães, órgão responsável por autorizar candidaturas no Irã. Ministro durante a presidência reformista de Mohammed Khatami, que durou de 1997 a 2005, ele foi aceito na última hora nas eleições e obteve 13,6% dos votos). Akbar trabalha com computação gráfica. Produz animações para a internet e, recentemente, conseguiu seus primeiros clientes no exterior. "Isso aconteceu porque durante muito tempo eles não souberam de onde eu era", diz. A palavra Irã não aparece em ponto algum no site de Akbar. E ele não se apressa em dizer onde vive aos clientes em potencial. Seu sonho é trabalhar no estúdio Pixar, de filmes como Toy Story e Carros.

A religião não tem espaço na vida de Akbar. Foi por curiosidade que ele aceitou o convite para encontrar-se com VEJA durante a celebração do Ashura, em Qom. Duas horas a sudoeste de Teerã, Qom é uma das grandes cidades da religião xiita. É um centro de peregrinação e estudos, onde se concentram alguns dos seminários mais importantes do islamismo. Foi de uma dessas universidades que o aiatolá Khomeini começou a pregar a revolução. Os estudiosos de Qom são figuras formidáveis na política e na cultura do Irã – por exemplo, em seus esforços para encaixar a modernidade tecnológica na moldura da religião. "A ciência moderna nos impõe questões éticas. É essencial analisar os pontos em que ela se choca ou se adapta às nossas crenças", diz Masood Azerbayejani, professor de um instituto onde se cruzam os estudos do islamismo e das ciências humanas.

Durante o Ashura, os clérigos se misturam aos milhares de peregrinos que visitam Qom. O Ashura rememora o assassinato do imã Hussein e de seus seguidores pelas tropas do califa Yazid, em 680. Foi esse episódio que cristalizou a fé xiita no âmbito do islamismo. Durante os dez dias da celebração, peças reencenam o martírio de Hussein (como fazem os católicos com a Paixão de Cristo). Na noite do nono dia e na manhã seguinte, há procissões de penitentes. Durante horas, os homens batem com as mãos no peito ou flagelam as costas com correntes (no passado, essa flagelação era sangrenta; o exagero foi proibido há dez anos). Muitos trazem ao desfile crianças vestidas como Ali, o filho de Hussein. O Ashura é um momento de expiar pecados e pedir bênçãos. Mas nele também se expressa a estreita ligação entre política e religião típica do islamismo. Essa ligação se manifestou de maneira surpreendente na carta manuscrita entregue à reportagem de VEJA por um jovem que tinha no colo o seu pequeno Ali. Dizia ela: "Em nome de Deus. Senhor George Bush, ouça! Não tente nos intimidar com ameaças de guerra e de morte, pois os seguidores de Hussein amam a justiça e o martírio. Cuide-se, pois se atacar nossos territórios islâmicos você só vai encontrar a perdição. Rei Yazid do presente! Esqueça a guerra antes que sua tirania seja destruída". A carta causou um riso desconfortável em Akbar, que ajudou a traduzi-la e pediu para que ela fosse rasgada. "Esse homem passou por lavagem cerebral", disse ele. Depois, olhando em volta, completou: "Eu sou completa minoria neste lugar". Akbar e o autor anônimo da carta são duas faces opostas do Irã. Duas faces que por muito tempo ainda devem conviver.

DIPLOMACIA DO RINGUE
Em meados de janeiro, americanos participaram de um torneio de luta greco-romana no Irã. Essa é talvez a única área em que os países mantêm relações. Alireza Heidari não subiu ao ringue. Mas ele conhece os inimigos: "Já ganhei deles. Nossa técnica é superior". Com 31 anos e 96 quilos, Heidari é a estrela máxima do esporte nacional iraniano. Por onde passa, com a orelha dilacerada típica dos lutadores, desperta admiração. "A orelha é um símbolo. Só um homem bom pode ostentá-la", diz. Heidari se mantém alheio à política. Acha que vencer é um estilo de vida. O campeão, que chega a ganhar até
100 000 dólares por competição, é dono de um hotel e de um restaurante e circula num carrão do ano.

RIQUEZA E PODER
Os irmãos Rafsanjani estão entre as pessoas mais poderosas do Irã. Akbar Hashemi, de 72 anos, foi pupilo do aiatolá Khomeini e presidiu o país por duas vezes. Mohammad Hashemi, de 64, é o homem da foto ao lado. Jamais gozou de tanto destaque, mas sempre esteve ao lado do irmão e é temido e respeitado como ele. Por anos, teve a incumbência de monitorar a mídia do país. Atualmente, é vice de Akbar na versão iraniana do Ministério do Planejamento. O clã desperta amor e ódio. Há um rumor de que a família seria a mais rica do Irã. Ou até mesmo a sétima mais rica do mundo. Mohammad desdenha disso. "Não somos sequer os mais ricos da nossa vila", afirma, garantindo que os negócios da família se resumem ao ramo do plantio de pistache. "Temos alguns parentes que dirigem uma cooperativa de 70 000 produtores", diz. Os Rafsanjani, por outro lado, são os grandes representantes do pragmatismo na política iraniana. Suas diferenças com o presidente linha-dura Ahmadinejad são explícitas. Diz: "Os inimigos do Irã estão sempre à procura de desculpas para agir contra nós. Ele lhes dá essas desculpas".

O VINGADOR DA REDE
O programador Alireza Shirazi, de 28 anos, tem como ídolo o americano Shawn Fanning, criador do Napster, site que desencadeou a revolução da troca de música na internet. "Ele era ousado e agia sozinho", diz. O mesmo vale para Shirazi, fundador do blogfa.com, maior portal de blogs do Irã. Sem alternativas de lazer, a juventude iraniana encontrou nessas páginas uma válvula de escape. O blogfa responde por um terço dos 750 000 blogs ativos do Irã. Seus atrativos são a independência e a garantia de privacidade. Não à toa, ele vem herdando usuários do Persian Blog, pioneiro nesse nicho que perdeu popularidade desde que veio à tona sua venda para gente ligada à política. Shirazi ainda não foi atingido pelas tentativas do governo de controlar os blogs. Diz ele, que fatura com seu negócio 5 000 dólares por mês: "Por enquanto, vou resistindo".


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