As pessoas com a síndrome estão vivendo mais.
Quem vai cuidar desses velhinhos?
Duda Teixeira
Fabiano Accorsi | Roberto Setton |
Danimira, de 61 anos, com sua irmã Mileni (à esquerda, na foto), em Ubatuba. Á direita, David na Aldeia da Esperança: vida autônoma |
Meio século atrás, pessoas com síndrome de Down raramente sobreviviam além da adolescência. Essa situação mudou inteiramente. A expectativa de vida delas saltou para 56 anos, e já não causam surpresa aquelas que ultrapassam os 60 ou mesmo os 70 anos. Vários fatores contribuíram para que isso acontecesse – a assistência médica específica e mais eficiente, maior oportunidade de convívio social, o acesso à escola e ao mercado de trabalho são os principais. Isso tudo formou uma geração de indivíduos que nasceram com Down e estão chegando à terceira idade. Trata-se de inesperado desafio. Como lhes proporcionar os cuidados de que necessitam na velhice? Quando chegam a essa fase da vida, seus pais, as pessoas que geralmente davam atenção a eles desde pequenos, ou estão muito velhos ou morreram. "No passado, os médicos diziam para os pais não se preocuparem, porque os problemas físicos nunca deixariam pessoas com Down chegar à idade adulta", diz Jô Clemente, uma das fundadoras da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), de São Paulo. "A situação agora é completamente outra."
Estima-se em 300.000 o número de brasileiros com Down. A síndrome ocorre quando o cromossomo 21, em lugar de ser formado pelo par normal, ganha um terceiro elemento. Os sinais exteriores da alteração genética são perfeitamente visíveis. Os olhos amendoados e o rosto arredondado lembram vagamente traços orientais. Os músculos são flácidos, o que dificulta a fala e aumenta a possibilidade de quedas. O metabolismo mais lento favorece a obesidade. O desenvolvimento intelectual é comprometido em grau variado. Problemas nos órgãos internos e no sistema imunológico também são freqüentes e exigem atenção médica (veja o quadro abaixo).
Muitos desses problemas podem ser minorados com o atendimento adequado. Em centros especializados e nas mais de 2.000 Apaes espalhadas pelo Brasil (quase uma para cada dois municípios), fonoaudiólogos treinam a fala, fisioterapeutas ensinam exercícios para fortalecer a musculatura e terapeutas estimulam o desenvolvimento cognitivo com brincadeiras e atividades. Poucas dessas pessoas com Down que hoje têm mais de 60 anos foram diretamente beneficiadas por essa estrutura de apoio, criada sobretudo nas últimas duas décadas. Alcançaram a terceira idade em grande parte graças ao esforço dos pais e familiares para incluí-las no convívio familiar e na sociedade.
Paulo Rezende | Celso Messias |
Dilmar, de 73 anos, de Anápolis, e Luiz Antonio, 61, na piscina de sua casa em Ribeirão Preto: ajuda dos irmãos |
A paulistana Danimira Antonia Ursich, de 61 anos, freqüenta a Apae desde 1990. Lá pratica tapeçaria e outros tipos de artesanato. Filha de eslovenos, conversa com fluência na língua que aprendeu com os pais. O português ela praticou com os irmãos. "Ela sempre foi incluída em todas as atividades da família. Foi uma orientação intuitiva dos pais na época", diz a irmã Mileni Ursich, médica de 69 anos, que a acolheu em casa. Quando pequena, Danimira foi alfabetizada numa escola para crianças com deficiência mental mantida por um grupo de médicos no quintal de uma casa. "Os principais responsáveis pela melhoria observada nas pessoas com síndrome de Down foram os familiares, que exigiram e forçaram os profissionais de saúde a se preparar para lidar com seus filhos", diz o médico geneticista e pediatra Zan Mustacchi, do Centro de Estudos e Pesquisas Clínicas de São Paulo.
O novo desafio dos pais agora é planejar a velhice dos filhos com Down. Os especialistas aconselham a treinar o deficiente para uma vida com autonomia. Isso significa ensinar a realizar sem ajuda tarefas do cotidiano, como fazer compras no supermercado, usar o sistema de transporte público e cozinhar. Um curso profissional pode prepará-lo para o trabalho. Um indivíduo com síndrome de Down pode perfeitamente fazer trabalhos repetitivos em linha de montagem ou ser assistente de portaria. Embora nunca se possa prever o grau de inteligência que uma pessoa com Down atingirá, a maioria é capaz de realizar as atividades domésticas sem supervisão. Outros conseguem avanços maiores. No Brasil, atualmente há cinco pessoas com Down freqüentando a universidade.
Na terceira idade, todas essas habilidades começam a ser prejudicadas pela debilidade física, mais acentuada que o normal. Um problema então é saber onde essas pessoas com Down vão morar e com quem poderão contar quando as manifestações da idade e outros sintomas ligados à síndrome se acentuarem. Como as Apaes e entidades similares não funcionam como internato, normalmente a responsabilidade é assumida pelos irmãos. "Com a morte de minha mãe, há seis anos, passei a cuidar do Luiz", diz a advogada Lorene Aparecida Silva, 40 anos. Ela mora em Ribeirão Preto, a 310 quilômetros de São Paulo, com o irmão Luiz Antonio Carlos da Silva, 61, que tem Down. Durante o dia, enquanto ela trabalha, Luiz permanece na Apae, onde pinta e monta mosaicos. Nos fins de semana, os dois aproveitam a piscina da casa ou saem para tomar sorvete.
Adultos com Down exigem cuidados especiais. Por exemplo, eles têm enorme dificuldade em lidar com situações novas. "Qualquer coisa que saia da rotina de um indivíduo com deficiência mental provoca grande ansiedade, que pode gerar conflitos", diz Silvia Longhitano, geneticista da Universidade Federal de São Paulo. A necessidade de exercícios físicos também é maior, devido à debilidade muscular. A ocorrência da doença de Alzheimer também se dá de forma precoce. O quadro degenerativo que leva a rompantes agressivos e perda progressiva de memória se manifesta a partir dos 40 anos em pessoas com Down, enquanto no restante da população ocorre após os 60. "Meu irmão sempre foi uma pessoa alegre e divertida, mas tem estado um pouco nervoso ultimamente", comenta Cândida Amaral Brito, 47 anos, que vive em Anápolis, Goiás. Filha caçula de uma família de treze irmãos, Cândida cuida do primogênito, Dilmar, que tem Down e 73 anos, e da mãe, de 92. Fã do Flamengo, em meados do ano passado Dilmar apresentou os primeiros sinais de Alzheimer. Com freqüência não reconhece os parentes. A debilidade física o obriga a usar uma bengala de apoio.
No Brasil, há poucos centros especializados no atendimento de idosos com Down. Em 1998, a Apae de São Paulo abriu o Centro Zequinha, onde idosos com deficiência mental podem passar o dia, fazer exercícios físicos e praticar jogos de atenção e memorização, uma forma de combater o Alzheimer. No condomínio Aldeia da Esperança, em Franco da Rocha, cidade da Grande São Paulo, 63 pessoas com deficiência mental moram em pequenos apartamentos, trabalham e são assistidas por fisioterapeutas, nutricionistas e médicos. Quatro dos moradores têm a síndrome de Down. David Maiberg Neto, de 59 anos, é um deles. Órfão de pai e filho de uma senhora de 97 anos, David tem uma vida bem integrada na Aldeia. Nos últimos anos, com a visão e a audição comprometidas, passou a contar com a ajuda da namorada, Sheila Falkas, 36, também moradora do condomínio. "Ela é tudo para mim e eu sou tudo para ela", diz David.
A Aldeia da Esperança não está ao alcance de qualquer cidadão. O custo inicial de ingresso equivale à compra de um pequeno apartamento e a mensalidade é de 3.500 reais. Por outro lado, 30% dos moradores não pagam nada. No momento, há uma fila de trinta candidatos à espera de uma dessas vagas gratuitas. "Infelizmente, nada foi feito pelo setor público. Tudo o que existe para o atendimento de idosos com Down é por iniciativa privada", diz Jô Clemente, da Apae. Esse é um assunto que os órgãos públicos não podem continuar a ignorar. Existe grande possibilidade de o número de pessoas com Down aumentar proporcionalmente em relação ao total da população, uma vez que as mulheres engravidam cada vez mais tarde. Entre as gestantes de 30 anos, a probabilidade de nascer uma criança com Down é de uma a cada 895 nascimentos. Aos 40, o risco sobe para uma a cada 97.