Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O desabafo do embaixador


editorial
O Estado de S. Paulo
7/2/2007

As aventuras da nova diplomacia brasileira, vagamente antiamericana, antiglobalização e comprometida com uma embolorada agenda do passado, foram denunciadas com grande elegância pelo embaixador Roberto Abdenur numa entrevista publicada pela revista Veja. Aposentado depois de 44 anos de carreira, encerrada na chefia da representação brasileira nos Estados Unidos, ninguém tem mais autoridade do que ele para denunciar a degradação dos padrões éticos e profissionais do Itamaraty, até há poucos anos um centro de excelência na administração pública nacional.

Abdenur já havia apontado equívocos muito graves dessa diplomacia ao criticar, em abril do ano passado, as ilusões do governo em relação aos parceiros emergentes. A China, disse Abdenur naquela ocasião, não é um parceiro estratégico, é uma potência concorrente, e é um erro perigoso atribuir-lhe o status de economia de mercado.

Essa declaração, saudada como lição de realismo em editorial nesta página, valeu-lhe uma censura de seus chefes. Foi-lhe cobrada, sem sucesso, uma retratação, e a partir daí Abdenur “caiu em desgraça”, incluído na lista dos malvistos pelos ideólogos do neoterceiro-mundismo brasileiro. Seu afastamento da embaixada em Washington, no final do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi conduzido por seus superiores no Itamaraty como inequívoca retaliação.

O embaixador não condena a aproximação com Índia, China, África do Sul e outros emergentes - iniciada, de fato, bem antes da conquista do Planalto pelo PT. Mas condena a política de converter a associação com esses países e outros menos desenvolvidos no grande eixo da diplomacia econômica brasileira.

“A esta altura da vida, com o mundo em transformação vertiginosa, não vale mais valorizar tanto a dimensão Sul-Sul”, disse o embaixador na entrevista publicada no último fim de semana. “Isso é um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado.” E, para não deixar dúvidas: “A nossa relação com a China e com a Índia também apresenta equívocos. É preciso ter parceria com os dois países, mas eles não podem ser considerados nossos aliados.”

Esse não é apenas o ponto de vista de um brasileiro realista e bem qualificado para julgar as alianças internacionais. Com notável franqueza, foi exposto igualmente por um vice-ministro de Comércio da Índia, Jairam Ramesh, numa entrevista exclusiva publicada em agosto pelo Estado. O Itamaraty pediu uma retratação daquele funcionário. A entrevista foi considerada especialmente inoportuna, porque foi concedida pouco antes de uma visita do primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, ao Brasil, mas nenhuma pessoa informada e honesta poderia qualificá-la como irrealista.

Embora ressalvando alguns acertos da política externa, Abdenur praticamente nada poupa da diplomacia comercial. Não deixa dúvida quanto ao erro de se haver torpedeado a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Na melhor hipótese, afirmou, o País deixa de ganhar dinheiro, pois outros têm assinado acordos com os Estados Unidos e isso altera as condições de competição.

A mistura da ideologia com a pauta comercial também afeta a ação brasileira na América Latina. Para Abdenur, o Brasil deveria expressar seu compromisso democrático denunciando as ações de Hugo Chávez contra a democracia na Venezuela, mas tem preferido apoiá-lo. Foi um erro, afirmou, incorporar “de chofre” a Venezuela ao Mercosul. O certo teria sido privilegiar o aperfeiçoamento do bloco, sem forçar sua expansão a qualquer custo.

Internamente, a ideologização mudou os padrões de gestão do Itamaraty e seus padrões ético-profissionais. Passou-se a privilegiar o alinhamento político, em detrimento da competência, denunciou o embaixador. E quem não se alinha, dizemos nós, “cai em desgraça”, como aconteceu com ele. Doutrinação como a dos últimos anos, acrescentou, não se viu nem na ditadura militar. Tudo isso era conhecido, mas a entrevista de Abdenur acrescenta um peso inegável às denúncias tantas vezes divulgadas pela imprensa. Mas não fará diferença prática, enquanto o presidente não se livrar de seus doutrinadores “estratégicos”.

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