Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 11, 2007

FERREIRA GULLAR A vida como ela é


Llosa sacou do bolso um saco plástico e guardou os restos dos poemas, com um sorriso diabólico

MEU APARTAMENTO , que há muitos anos está quase sempre vazio, já que moro sozinho, estava naquele dia inesperadamente cheio de gente. Não era gente de jornal nem de televisão, que constitui minhas visitas mais freqüentes; eram outras pessoas, sendo uma delas o romancista Vargas Llosa. Embora nunca o tenha visto na vida, parecia-me muito natural que estivesse em minha sala, rindo e falando do Peru, da época em que estive exilado em Lima.
Enquanto conversávamos, não me saía da lembrança a imagem de uma múmia que, num museu peruano, parecia rir de nós. Estranhamente, porém, estava convencido de que Vargas Llosa era, na verdade, Ricardo Cravo Albin, que se mostrava agora vivamente interessado nos quadros e objetos curiosos que ocupam as paredes e espaços da casa.
Demorou-se observando uma colagem, construída com estrias de papel colorido, aparas que colei sobre uma cartolina marrom e a que dei o nome de "puro acaso", já que se fez por acaso. Vargas Llosa, porém, que se mostrava muito bem informado sobre o movimento neoconcreto, estava interessado em meus livros-poema, o que me deixou ao mesmo tempo lisonjeado e surpreso. Não sabia, disse-lhe eu, que a notícia desses poemas inéditos tivesse chegado a Lima, e vi que estávamos em 1960, um ano após o lançamento do neoconcretismo. Sorriu de minha surpresa e, sem falar, deu-me a entender que o Peru sempre estivera a par da vanguardas mundiais.
Fui atrás dos livros-poema, mas, ao abrir a gaveta onde os guardara, eles, corroídos de traça, desfizeram-se em minhas mãos. Llosa então sacou do bolso um saco plástico e ali guardou os restos dos poemas, lançando-me um sorriso diabólico, que me deixou aterrado.
Foi quando surgiu na sala tia Bizuza, que eu dava por morta há 40 anos, servindo bolinhos fritos de aipim, para a alegria dos visitantes, que lhe esvaziaram o prato. Mas, logo, veio Maria, minha atual cozinheira, com outro prato de bolinhos para servir ao ilustre convidado.
Quando abriu a boca para morder o bolinho de aipim, percebi num susto que seus dentes eram iguais aos da múmia. Não dei importância a isso, pois sabia que alguns escritores famosos costumam não escovar os dentes e que muitos deles, por desleixo, os têm negros e cariados, razão por que ficam banguelas antes dos 60. O que não acontecerá comigo, pensei, já que sempre escovo os dentes e uso fio dental, uma invenção providencial que vai acabar com os problemas bucais dos escritores.
Começou então, a um canto da sala, uma discussão acerca da arte contemporânea, mas fiz que não escutava e, para afastar Vargas Llosa da polêmica, passei a mostrar-lhe os pequenos objetos que mantenho em cima de uma estante, na sala, e que vão desde um pequeno búzio branco comprado em Recife até um instrumento para coçar e massagear as costas com duas bolas, que mais parece um comprido e inusitado pênis, razão por que o apelidei de "pênis-gadanho", já que uma de suas extremidades parece um garfo.
O peruano achou graça, elogiou meu senso de humor e inesperadamente propôs-me escrevermos a quatro mãos um livro de historietas obscenas. Fiz que não entendi e o encaminhei ao meu escritório, a fim de mostrar-lhe uma cópia que fiz de um quadro de Goya, mas que já tinha sido apagado por urina de gato.
Ocorreu, no entanto, que o escritório, naquele momento, servia de cenário a uma filmagem: minha filha Luciana, detrás de uma câmera, filmava o meu falecido Gatinho que, ali, muito vivo, passeava por cima da escrivaninha. Decidi, então, voltar para a sala, mas Vargas Llosa havia desaparecido, e eu estava agora na casa do ator Otton Bastos, em meio a pessoas que não conhecia e que tampouco me conheciam. Após zanzar por ali, à toa, verifiquei que eram quase 16h e que deveria ir para casa, onde me esperavam para o almoço.
Desci a escada e, ao chegar à rua, dando-me conta de que a camisa que vestia não era minha, decidi voltar. Entrei por uma porta, subi uma escada e só então verifiquei que aquele não era o apartamento de Otton, o que me fez descer a escada, sair à rua e tentar entrar pela porta certa. Desta vez acertei o caminho mas, ao chegar ao apartamento dele, ninguém sabia de minha camisa; resolvi ir embora assim mesmo. Na rua, já anoitecera, e eu estava no Cosme Velho, temendo não poder sair dali. Surgiu pouco depois um bonde dos anos 50, quase vazio, mas que não me servia, e era tácito que por ali não passaria táxi nenhum. Assim, angustiado e sem condução, achei melhor acordar. E acordei, aliviado, já que da vida não se acorda.

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