O conhecimento econômico avançou combinando desenvolvimento teórico com sofisticação na análise de dados
HÁ NO Brasil uma divisão convencional entre economistas ortodoxos e heterodoxos. Uma das principais referências heterodoxas é John Maynard Keynes. Em 1936, quando a sua "Teoria Geral" foi publicada, a economia clássica era incapaz de explicar ou criar políticas para resolver a Grande Depressão. Apenas dez anos depois, o futuro Prêmio Nobel Paul Samuelson já observava a grande aceitação das idéias keynesianas nas melhores universidades americanas e britânicas.
Mas a pesquisa em economia não parou em 1936. Na década de 50, Milton Friedman argumentou que a hipótese de Keynes de que o consumo é uma função da renda corrente e que além disso cresce menos do que proporcionalmente com a renda não era válida. Friedman partiu de observações empíricas, mas também de um raciocínio puramente teórico baseado no modelo de um Homo economicus racional.
Segundo esse modelo, cada família faz suas decisões sobre consumo baseadas na sua renda esperada no longo prazo -a renda permanente, no jargão de Friedman-, em vez da sua renda corrente. Um trabalhador desempregado que sabe que em breve terá boas ofertas de emprego consome mais do que um com piores perspectivas.
Os dados econômicos trazem informação apenas sobre a renda anual -uma medida muito imperfeita da renda permanente. Para superar essa dificuldade, Friedman desenvolveu uma análise estatística sofisticada -os detalhes eu vou poupar ao leitor-, que mostrou que, na realidade, como a teoria predizia, o consumo de cada família é aproximadamente proporcional à sua renda permanente. Uma das implicações desse resultado é que algumas das políticas keynesianas de curto prazo, como o corte temporário de imposto sobre a renda, causam pouco estímulo ao consumo, porque têm efeito limitado na renda permanente dos consumidores. O trabalho de Friedman não foi a última palavra sobre o comportamento do consumo, mas, com um artigo de Modigliani e Brumberg no mesmo espírito, foi a base para as pesquisas sobre esse tópico feitas nos últimos 50 anos.
O livro de Friedman é um excelente exemplo de como inovações na teoria, aliadas a uma análise empírica rigorosa, trazem nova luz a problemas de política econômica, mas não é um caso singular. O conhecimento econômico avançou muito nas últimas décadas combinando desenvolvimentos teóricos com uma crescente sofisticação na análise de dados.
Um exemplo entre os primeiros é a teoria dos jogos, que trouxe uma perspectiva original para situações de interação estratégica. Por sua vez, a análise empírica beneficiou-se do progresso na econometria, o estudo de métodos estatísticos para a interpretação da evidência econômica, e da construção de novas bases de dados.
Como em todo campo em que há atividade de pesquisa, uma parte do que é produzido em economia tem pouco valor e é rapidamente esquecida, mas há grande contraste entre a literatura "convencional" e a literatura acadêmica heterodoxa no Brasil, em que se encontra com muito maior freqüência referências a Keynes ou Ricardo (morto em 1823) do que a artigos recentes em econometria ou teoria econômica.
Tudo isso seria de pouca importância se fosse uma mera discussão acadêmica, mas essas divisões têm outras conseqüências. No começo da década de 70, Carlos Langoni documentou que investimentos em educação no nosso país tinham uma taxa de retorno muito alta e poderiam servir para reduzir a desigualdade. O trabalho de Langoni foi recebido com hostilidade no meio acadêmico brasileiro e não influenciou a política educacional.
Houve elementos ideológicos nesse episódio, mas a acolhida negativa também foi resultado da falta de conhecimento entre boa parte dos economistas brasileiros da teoria do capital humano e da incapacidade destes para julgarem a qualidade dos métodos empíricos que Langoni utilizou. Não é óbvio que o governo da ditadura, interessado em grandes obras e subsídios a empresários amigos, teria escutado a academia, mas perdemos uma chance de investir mais cedo em educação.
Leio no dicionário Houaiss da língua portuguesa que um uso informal da palavra "ortodoxo" é "que não tolera o novo e o diferente". Exatamente o que parece descrever uma parcela dos heterodoxos.
JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN, 58, professor de economia na Universidade Princeton (EUA), escreve quinzenalmente aos domingos nesta coluna.
Entrevista:O Estado inteligente
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