Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Empresas e famosos compensam a emissão de carbono

A neutralização da culpa

Plantar árvores para compensar a emissão de poluentes
não alivia o o efeito estufa, mas é parte da solução


Julia Duailibi

Eric Lee/Paramount Classics/AP
Divulgação
Al Gore: viagem neutra ao Brasil. Em Resende, no Rio (à dir.), mudas prontas para neutralizar


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Poluição neutra

De tempos em tempos, práticas criadas para reduzir a degradação do meio ambiente ganham notoriedade especial. Com o passar dos anos, algumas conquistam mais solidez e a atenção quase exclusiva das pessoas. Dois exemplos recentes são a febre de consumo de alimentos orgânicos e a "neutralização", uma invenção de economistas, especialistas em barganhas. A barganha do "comércio verde" é baseada na idéia de que quem polui a atmosfera pode e deve fazer alguma coisa para compensar, ou neutralizar, a agressão. Em geral, isso se resume a plantar uma árvore. Entre todos os poluentes da atmosfera, o principal alvo da neutralização é o dióxido de carbono (CO2), gás responsável por impedir a dissipação para o espaço das ondas de calor resultantes da reflexão da luz do sol sobre a superfície do planeta. O metabolismo de plantas na etapa de crescimento consome grande volume de CO2. A árvore, então, mantém o carbono aprisionado em sua estrutura por décadas – ou até morrer ou ser cortada e transformada em carvão.

Quem não se dispõe a plantar sua própria árvore neutralizadora pode recorrer a especialistas. Entidades ambientalistas e ONGs podem plantar árvores a pedido da pessoa disposta a tornar sua presença menos onerosa para a saúde ambiental do planeta. Pagam-se pelo serviço entre 10 e 30 reais por muda. O plantio não precisa ocorrer, obviamente, na região onde o dióxido de carbono foi emitido. Existe ainda algum debate acadêmico sobre a real influência humana na aceleração do efeito estufa – fenômeno que, em níveis normais, garante a existência de vida na Terra. Mas, do ponto de vista da percepção popular, essa questão está selada. A vida civilizada oferece risco ao planeta. Ponto. Quem puder fazer alguma coisa para ajudar estará sendo um terráqueo responsável.

Carol do Vale
Com sete árvores, o administrador de empresas Ronney da Cunha vai neutralizar o MBA que cursou em 2006. Gostou da idéia. Ele e sua mulher, Denise, planejam neutralizar o nascimento de Gabriel, o segundo filho do casal


A neutralização foi inventada por uma entidade inglesa em 1997. Em dez anos, essa prática passou a ser levada a sério pelas grandes empresas mundiais, como a companhia aérea British Airways, e por celebridades como o ator Leonardo DiCaprio e os Rolling Stones. Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, veio ao Brasil no ano passado para lançar Uma Verdade Inconveniente, seu brado de alerta sobre a responsabilidade humana na aceleração ruinosa do aquecimento global. Gore fez questão de neutralizar sua viagem (o gás emitido pela turbina do jato que o trouxe, principalmente) com o plantio de 53 árvores em São Carlos, no interior paulista. A impressão e distribuição da edição brasileira do livro de Gore também foi neutralizada, com o plantio de 136 árvores. Gore deixou sementes. A neutralização está se tornando uma prática bastante comum também no Brasil. O Carnaval de São Paulo será neutro. Não é isso que vocês estão pensando! É neutro não no sentido de sem muita graça... sem ritmo. Usa-se aqui o termo em sua nova acepção ambiental.

Desde os carros alegóricos até a energia do Sambódromo, tudo será neutralizado. Custo ambiental da folia? Mil e duzentas árvores. Até a missa que o papa Bento XVI celebrará em São Paulo, em maio, será neutra, com o patrocínio da prefeitura paulistana. A iniciativa cria uma situação inusitada: o culto será católico, mas a neutralização, multirreligiosa. O pagamento em árvores será bancado por todos os contribuintes da cidade, católicos e não católicos.

Mas qual é a real eficácia da neutralização? Para alguns cientistas, ela é apenas a materialização do sonho quintessencial do politicamente correto acomodado: nenhum hábito de produção e consumo precisa ser mudado, desde que se plantem algumas dezenas de mudas. Com a neutralização, dizem esses críticos, a poluição torna-se moralmente permitida – ou pelo menos um pouco mais aceitável. Além disso, ainda que as árvores novas funcionem como filtros, tirando o CO2, calcula-se que seria preciso cobrir com elas cada metro quadrado de toda a superfície do planeta para neutralizar o excesso de dióxido de carbono acumulado na atmosfera. Tudo isso é verdade. Mas a ciência ambiental é ainda tão especulativa que tanto o cético quanto o fanático preservacionista podem estar errados. Na dúvida, é bom evitar os excessos. Ainda que não resolva o problema do efeito estufa, a neutralização é parte da solução. "É melhor neutralizar do que não fazer nada. É um começo", diz o engenheiro florestal Paulo Braga, diretor da Max Ambiental, empresa que elabora projetos de neutralização de carbono. Para Mario Monzoni, coordenador do centro de estudos em sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, a neutralização só será eficaz se for acompanhada de uma drástica diminuição da queima de combustíveis fósseis no mundo. Caso contrário, não passará de mais um modismo.

Adrian Dennis/AFP
Menos fumaça no céu: a British Airways oferece passagens neutralizadas a passageiros que pagarem um pouco mais

Guiadas pelo marketing, as grandes companhias juram fazer as duas coisas: reduzir os poluentes e neutralizar as emissões que forem inevitáveis. "As empresas estão tentando dar uma resposta ao atual sentimento de culpa das pessoas", disse Rony Rodrigues, da Box 1824, consultoria especializada em análise de mercado. Num período de cinco anos, a companhia aérea inglesa British Airways reduziu em 8% a emissão de dióxido de carbono liberado na queima de querosene dos aviões. A companhia também cobra uma taxa extra dos viajantes que desejarem neutralizar seus vôos. Custa 14,49 dólares neutralizar o trecho Londres–São Paulo, responsável pela emissão de 1,07 tonelada de CO2 por passageiro. O parque de diversões Playcenter foi uma das últimas empresas brasileiras a aderir à moda: neutralizará o carbono do funcionamento de 35 atrações, plantando 10 904 árvores por ano até 2011. Famosos também surfam na nova onda ambiental. A dupla Sandy & Junior vai neutralizar todos os setenta shows deste ano e a gravação do seu novo CD. A Pindorama, produtora da atriz Regina Casé e de seu marido, Estevão Ciavatta, neutralizou, com 28 árvores, um comercial feito para a Africa, agência de Nizan Guanaes. As mudas plantadas serviram para abater os deslocamentos da equipe de cinqüenta pessoas, os gastos com energia e o lixo da produção. Brinca a atriz, para desespero dos ambientalistas: "Com a quantidade de árvores que plantei, já posso queimar muito carbono". O administrador de empresas Ronney Saverbronn da Cunha, 37, contratou uma consultoria para neutralizar um curso de MBA feito no ano passado. Serão necessárias sete árvores para compensar o custo ambiental da fabricação das 3.120 folhas de papel usadas, do trajeto de 15 quilômetros feito de carro durante noventa dias e da energia usada em sala de aula. "Agora pretendo neutralizar o nascimento do meu filho, Gabriel", disse Ronney, cuja mulher, Denise, está grávida de oito meses.

Mas quem se encarrega de fazer tantos cálculos e plantar tantas árvores? E quem fiscaliza tudo isso? Existe uma miríade de entidades especializadas na neutralização. A Max Ambiental já fez uma dezena de projetos no verão de 2005/2006. Para este ano, já há trinta outros engatados. A Iniciativa Verde, que também faz a neutralização para pessoas e empresas, teve quinze projetos em 2006. Desde janeiro, trabalha em outros 35. A Max Ambiental atua em parceria com a SOS Mata Atlântica, entidade que planta árvores muito antes da moda da neutralização. "Para nós, o plantio não é novidade. O que interessa é que as empresas, ainda que em busca do marketing, tenham aderido", declarou Adauto Basílio, diretor de captação de recursos e responsável pelos programas de reflorestamento da entidade. O custo dos projetos depende do número de árvores e das espécies plantadas. Pode chegar centenas de milhares de reais. Engenheiros florestais e especialistas em crédito de carbono estão sendo disputados a tapa pelas empresas especializadas em neutralização. Tudo para aliviar a culpa de clientes, grandes e pequenos, em faturamento e lucro. A última edição do relatório Carbon Down Profits Up, da entidade inglesa Climate Group, mostra uma evolução de adesões à causa: 74 companhias, de onze países, preocupadas com as emissões de carbono.

Andrew Medichini/AP
Na moda: a missa celebrada pelo papa Bento XVI em São Paulo terá a emissão de CO2 compensada

Como a neutralização não é obrigatória, nenhuma entidade governamental fiscaliza se os cálculos estão corretos ou se as árvores são realmente plantadas. Para não cair no conto-do-vigário, é bom verificar se a prestadora de serviço contrata alguma auditoria externa conhecida para analisar a execução dos trabalhos. As entidades mais sérias fazem isso. Como qualquer outro modismo, esse também tem sua cota de aberrações e hipocrisia. Palco de alguns dos piores crimes de corrupção (sete envolvendo até órgãos ambientais) da história brasileira, a Câmara dos Deputados anunciou que vai neutralizar suas atividades. Já foi encomendado um estudo para calcular a emissão de dióxido de carbono com transporte e consumo de energia elétrica dos 513 deputados. A idéia é compensar os danos ao meio ambiente. Pena que os parlamentares não possam neutralizar também danos de outra natureza.

Com reportagem de Cíntia Borsato

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