Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Cultura Poemas musicados por Carla Bruni

Quando a voz trai a letra

Um poema cantado por um astro pop pode resultar
em muitas coisas. Mas jamais será o mesmo poema


Jerônimo Teixeira

A americana Emily Dickinson passou praticamente a vida toda na Nova Inglaterra, onde nasceu em 1830. Era uma mulher tímida, que se tornou progressivamente mais reclusa até morrer, em 1886. Dos mais de 1 000 poemas que deixou, menos de uma dezena foi publicada em vida. Nascida na Itália e radicada na França, Carla Bruni é uma ex-modelo que se converteu em chanteuse. Gravou três discos, que juntos venderam milhões de cópias, já namorou o decano do rock Mick Jagger e o dublê de empresário e astro televisivo Donald Trump. Será difícil encontrar qualquer coisa em comum entre essas duas mulheres – parecem, aliás, o contrário uma da outra. No entanto, Carla Bruni tomou um inesperado interesse pela obra de Emily Dickinson – musicou três poemas da poeta americana em seu mais recente disco, No Promises. Como é de praxe na obra da autora, são poemas curtos, de linguagem depurada quase ao ponto de se tornar críptica. A voz rouca e sussurrada de Carla Bruni amacia as arestas dos versos originais em canções de corte meio folk, e seu charmoso sotaque ítalo-francês torna mais lânguida a sensualidade austera de Emily Dickinson. No Promises é todo dedicado a poemas de língua inglesa – e em todas as faixas o poema original acaba de algum modo suavizado. O disco de Carla Bruni atesta um fato curioso: embora mexa quase sempre com os valores musicais da língua, a poesia tem seu sentido substancialmente alterado sempre que alguém resolve musicá-la.

Musicar um poema é quase como traduzi-lo para outra língua: o sentido original é traído. Isso não constitui necessariamente um problema quando a traição é realizada com plena consciência criativa. Um bom exemplo recente é o disco The Poems of Elizabeth Bishop, da cantora de jazz brasileira Luciana Souza. O jazz se presta bem a traduzir os ritmos modernos de Elizabeth Bishop, e a voz de Luciana, emotiva mas límpida, sublinha o desespero que a forma objetiva da poeta mantém em rigorosa contenção. A música às vezes tem o dom de ressaltar aspectos subterrâneos ou menos evidentes do poema. O erotismo de Elegia: a Sua Amante que Se Retira para a Cama, do poeta inglês do século XVII John Donne, é razoavelmente claro – mas o leitor mais ingênuo talvez deixe de captar toda a obscenidade que se esconde sob as metáforas elegantes ("a mulher é um livro místico") e as torções sintáticas do autor. Musicado em levada de bolero por Péricles Cavalcanti e interpretado por Caetano Veloso, o cafajestismo de Donne, com sua mão-boba a percorrer todo o corpo da amante, fica mais patente. Há também, é claro, os casos em que o sentido original é quase anulado ou contradito pela música. Ao cantar um soneto de Camões em Monte Castelo, do Legião Urbana, o vocalista Renato Russo anestesiou os jogos conceituais que o poeta português faz em torno do amor ("amor é fogo que arde sem se ver... é um andar solitário por entre gente" etc.). Os malabarismos verbais de Camões são obscurecidos pelo messianismo pop da canção.

O abismo entre letra e melodia só é um tema sensível para os leitores modernos. Nas suas origens, é provável que a poesia fosse indissociável da música. Poemas antigos como os salmos bíblicos e os épicos de Homero ao que tudo indicam foram transmitidos oralmente por poetas-cantores antes de ganhar a forma escrita. A poesia moderna, porém, vem perseguindo o silêncio da palavra impressa há muito tempo, a ponto de alguns de seus expoentes recusarem o lirismo (palavra que vem de "lira", o instrumento tradicional com que o bardo acompanhava seus recitais). No Brasil, o caso paradigmático é João Cabral de Melo Neto, poeta que gostava de cultivar a fama de "homem que não gosta de música" (e que no entanto teve o poema dramático Morte e Vida Severina musicado por Chico Buarque).

O maior mérito de Carla Bruni está no seu flerte com o silêncio: não há vibratos nem dramatizações desnecessárias em No Promises – até porque a moça tem uma voz bem pequeninha. A cantora, porém, é talvez jovial demais para o material que escolheu. Um dos poemas do irlandês W.B. Yeats – prêmio Nobel de 1923 e um dos maiores poetas da língua inglesa no século XX – musicados por Carla trata, com amargura irônica, da senilidade erótica. "O homem pode abandonar todas as pretensões / se está amparado sobre uma bengala", diz Yeats. No sussurro sexy de Carla Bruni, versos como esses simplesmente não são críveis – embora soem muito agradáveis. É como se Gisele Bündchen desse voz (igualmente pequena e rouca, por sinal) à tuberculose de Manuel Bandeira e às dores de cabeça de João Cabral de Melo Neto. Aliás, se o disco tiver encarte com fotos como o de No Promises – por que não?


Arquivo do blog