Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 10, 2007

Brasil, o paraíso da jogatina Álvaro Cardoso Gomes



No Brasil, como todo mundo sabe, joga-se muito. Há a Sena, a Mega Sena, a Loteca, as Raspadinhas, além dos jogos de azar, à margem ou quase à margem da legalidade: o jogo do bicho, os cassinos clandestinos, as máquinas caça-níqueis espalhadas pelos bares da cidade e os bingos, que o governo mandou fechar e depois, por razões que a própria razão desconhece, permitiu que voltassem a funcionar. Agora, surge uma outra modalidade de jogo de azar que irá inflacionar ainda mais o nosso mundo da jogatina, sem o ônus, porém, das apostas e do investimento de dinheiro. Vamos chamá-la, na falta de melhor termo, de “Vestibussena”, “Vestiboteca” ou de “Vestibingo”, ou seja, o vestibular por sorteio. É muito simples: o aluno que for classificado no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se submete a “um só sorteio anual, entre inscritos para curso específico de determinada instituição”. Se tiver sorte, como se requer em qualquer jogo de azar, ganha a “bolada”, ou seja, a vaga numa universidade pública.

A “brilhante” idéia de extinguir o vestibular, colocando em seu lugar um sorteio e transformando-o em jogo de azar, é do senador Sibá Machado (PT-AC), que a defendeu em plenário, apresentando um projeto de sua autoria (PLS 65/2005). O projeto está tramitando na Comissão de Educação. Apesar de estapafúrdio, corre o risco de ainda ser aprovado, como tantos outros projetos sem pés nem cabeça apresentados por parlamentares que, em vez de enfrentarem a realidade sem subterfúgios, se contentam com remédios paliativos.

O projeto do senador acreano se assemelha a muitos outros do PT, feitos no calor da hora, sem uma reflexão mais profunda dos problemas e criados apenas para resolver uma situação emergencial. Do mesmo modo que o Fome Zero - natimorto porque inexeqüível -, que o “bolsa-esmola” e que a Operação Tapa-Buracos - uma irresponsabilidade absurda para com os pobres motoristas pagadores de altos impostos e servidos por estradas esburacadas -, essa idéia da transformação do vestibular em sorteio não pode mesmo ser levada a sério. À semelhança do “bolsa-esmola”, que, a par de seus benefícios práticos e imediatistas, serviu mais para alavancar a popularidade do presidente da República e criar uma legião de desocupados, esperando a bênção do Estado-padrinho, esse projeto, por sua vez, criará uma legião de alunos vagabundos. Afinal, para que estudar, se tudo depende da sorte, da boa vontade de uma entidade secreta chamada Fortuna?

Reconheça-se que, na realidade, o vestibular é uma coisa iníqua, chegando a ser absurda em suas exigências e que resultou das pouquíssimas vagas existentes nas universidades públicas do Brasil. Com isso acabou por privilegiar as execradas “elites” que, podendo pagar bons colégios e cursinhos, fez com que seus privilegiados filhos tomassem as poucas vagas do menos favorecidos economicamente, confinados nas escolas públicas, onde o ensino é de baixíssima qualidade. Desse modo, criou-se no Brasil uma lógica perversa no que diz respeito ao sistema universitário. Em geral, quem estuda na universidade pública, que não se sabe por que cargas d’água é gratuita para todos, são os ricos e remediados. Aos pobres restam as universidades privadas, a maioria delas cara e ineficiente. Mas querer reparar uma iniqüidade com uma iniqüidade maior, porque fundada no acaso, na sorte, é coisa que clama aos céus.

Ao contrário do que propaga o ilustre senador Sibá Machado, que pretende “extinguir o vestibular sem prejudicar a qualidade do ensino nos níveis fundamental e médio”, essa qualidade será, ao contrário, muito prejudicada. Senão, vejamos: queira ou não, a instituição do vestibular obrigou as escolas privadas a se reciclarem continuamente, a investirem nos professores, visando a um melhor desempenho de seus estudantes. Queira ou não, os alunos formados por essas instituições entram nas universidade com uma sólida base, graças à quantidade e qualidade das aulas, à excelência dos professores, à excelência do material didático. Pode-se ainda acrescentar um outro argumento a favor dessa competição esdrúxula: os clássicos, nossos pobres clássicos, só e tão somente continuam lidos e estudados (ou pretensamente lidos e estudados) pelos estudantes que se destinam a todas as carreiras graças às listas organizadas tanto pela Fuvest quanto pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em que pese o fato, portanto, de ser a malfadada “elite” que tem acesso a esse ensino de primeira, há que se reconhecer que a competição imposta pelo vestibular, seja ela de caráter quantitativo ou não, estimula o ensino, estimula o estudo.

Se, ao contrário, se instituir o sorteio, qual será o estímulo para o estudante? Então, colocam-se num mesmo patamar o aplicado, o bem dotado, o inepto, o preguiçoso? Desestimulam-se os colégios a investirem em seus professores, em material didático adequado, porque mamãe Fortuna é que decidirá? Com esse projeto absurdo, num passe de mágica, pretende-se resolver a situação de quem teve um péssimo ensino fundamental e médio. Em suma: o buraco, senador, é bem mais embaixo. Não se resolve um problema de raiz com uma solução emergencial, com a loteca das boas intenções.

O governo tinha é que investir maciçamente no ensino fundamental e médio, estimular e pagar bem a seus despreparados professores, aparelhar as escolas, dar condições aos alunos carentes de assistirem a aulas de qualidade nas escolas públicas. E só depois disso, pensar em como resolver o gargalo do malfadado vestibular.

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