Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

As ambições culturais de Abu Dhabi

Um museu do Louvre para o Oriente

Os Emirados Árabes planejam um pólo turístico
que incluiria uma filial da instituição francesa


Jerônimo Teixeira

AFP
Zaha Hadid/The New York Times
ILHA DA FELICIDADE – E DA OUSADIA
Instalada em uma ilha nos arredores de Abu Dhabi, a rica capital dos Emirados Árabes, Saadiyat deverá ser um pólo do turismo cultural, com prédios projetados por arquitetos de renome internacional. O museu de arte clássica (no topo), desenhado pelo francês Jean Nouvel, poderá ser a primeira filial do Museu do Louvre fora da França. Um dos projetos mais surpreendentes, assinado pela iraquiana Zaha Hadid (acima), é um centro cultural cujas formas lembram ondas do mar. Com marinas, hotéis de luxo e bairros residenciais, a ilha de Saadiyat (maquete geral na foto abaixo) deverá custar 27 bilhões de dólares, financiados com o abundante petróleo dos xeques
Akhtar Soomro/The New York Times

Ricos em petróleo, os Emirados Árabes, com 4 milhões de habitantes e 84.000 quilômetros quadrados – um pouco menos que a área do estado de Santa Catarina –, tornaram-se recentemente um pólo internacional do turismo de luxo. O feito se deve quase que exclusivamente a Dubai, com seus hotéis e shopping centers suntuosos. Mas Abu Dhabi, a capital dos Emirados, deseja abocanhar uma fatia suculenta desse negócio. Está em andamento um projeto monumental para um novo centro turístico e imobiliário nos arredores da cidade, a ilha de Saadiyat – ou, em português, a ilha da Felicidade. Os números, como é regra nos Emirados, são colossais: o investimento total ficaria por volta de 27 bilhões de dólares. A grande novidade é que, muito além de ser um centro comercial e turístico, com marinas e hotéis, Saadiyat pretende ser um lugar de alta cultura, com quatro museus, pavilhões para grandes exposições e um centro cultural, todos projetados por arquitetos de renome internacional. Esse distrito artístico incluiria um Museu Guggenheim, dedicado à arte contemporânea, e um museu de arte clássica, gerido pelo Louvre, em conformidade com um contrato ainda a ser fechado com o governo francês – que já vem causando polêmica.

Projetado por Jean Nouvel, o futuro museu de arte clássica de Saadiyat deverá ser a primeira filial internacional do Louvre. O acordo, ainda não plenamente oficializado, foi negociado entre o governo francês e as autoridades de Abu Dhabi e ignorou representantes dos meios culturais. Os intelectuais reagiram de maneira exaltada. Um abaixo-assinado contra a "venda da alma" francesa, capitaneado pelo historiador da arte Didier Rykner, reuniu 4.000 signatários na internet, incluindo mais de uma centena de curadores de museu (o curioso é que a "alma" do Louvre é constituída em grande parte pelas artes italiana, flamenga e alemã). "A museologia francesa é tecnicamente a melhor do mundo, mas seus curadores são muito conservadores e bairristas", diz a curadora brasileira Angélica de Moraes. As objeções ao acordo não são muito sólidas: fala-se no risco de danificar obras de arte e de esvaziar o acervo da matriz do Louvre. Pelo que foi divulgado do contrato nos jornais franceses, as agências da França teriam pleno controle sobre o que seria ou não emprestado a Abu Dhabi. De resto, o empréstimo de obras entre museus é prática comum.

Em contrapartida ao empréstimo de obras, o sistema de museus da França receberia perto de 1 bilhão de dólares de Abu Dhabi. O Louvre seria a cereja do bolo na ousadia arquitetônica de Saadiyat. O complexo cultural deverá contar também com o indefectível Museu Guggenheim – mas este já não causa nem polêmica nem deslumbramento. Com uma matriz em Nova York e museus afiliados em Berlim, Veneza, Las Vegas e Bilbao, o Guggenheim é conhecido ironicamente como o "museu McDonald's". Os críticos acusam o Guggenheim de investir demasiado em prédios pujantes – como o emblemático museu de Bilbao, na Espanha, desenhado por Frank Gehry, o mesmo que assina o projeto em Saadiyat – e negligenciar o acervo que preencha esses vastos espaços.

Saadiyat por enquanto é só uma vistosa maquete exposta em um dos opulentos hotéis de Abu Dhabi. A maioria dos contratos com instituições ocidentais ainda está para ser oficializada. A ambição do projeto talvez seja ainda maior do que seus números: Abu Dhabi quer ser uma espécie de oásis artístico no Oriente Médio, tomando o lugar de tradicionais cidades de cultura da região que hoje vivem em situação de conflito, como Beirute e Bagdá. É uma pretensão curiosa para um lugar em que não existe uma cultura local vibrante e até a mão-de-obra dos hotéis é na maior parte proveniente dos países vizinhos. Mas vale observar que Abu Dhabi não está apenas tentando seduzir o rico turista cultural. Revelando uma visão de longo prazo relativamente nova entre os nababescos xeques do petróleo, o projeto de Abu Dhabi incluiria até um centro de artes gerido pela prestigiosa Universidade Yale. "É muito fácil desdenhar as pretensões culturais dos Emirados como coisa de novo-rico. Mas devemos ser mais generosos. A mistura cosmopolita que se vê naquelas cidades talvez um dia gere novas formas de cultura e de cidadania", diz o arquiteto libanês Hashim Sarkis, professor da universidade americana Harvard e proprietário de um escritório que realiza muitos projetos no Oriente Médio. Resta ainda uma certa dúvida sobre que obras de arte poderão ser exibidas nos magníficos museus da futura ilha da Felicidade. Em princípio, tudo seria permitido. "Nos Emirados, o clero muçulmano não conta com o mesmo poder que tem no Irã, na Arábia Saudita ou no Egito", diz o cientista político iraniano Mehdi Mozaffari, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. É possível, porém, que algumas restrições sejam feitas, em respeito às pressões de países vizinhos. A nudez e o erotismo, centrais na arte ocidental, talvez ganhem uma representação mais discreta no Louvre oriental.

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