Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 04, 2006

As causas do apagão aéreo

O apagão aéreo

Atrasos de até vinte horas e cancelamento
de vôos levam o caos aos aeroportos do
país e expõem a fragilidade do controle
do tráfego aéreo, que funciona no limite
e coloca em risco a vida dos passageiros


Rafael Corrêa e Rosana Zakabi


Foto Vivi Zanatta-AE/Custódio Coimbra e Eugênio Moraes-Ag. O Globo
Aeroportos internacionais de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (da esquerda para a direita): revolta e exaustão de quem foi impedido de embarcar



Os brasileiros que viajaram de avião nas últimas duas semanas foram vítimas de uma crise há muito anunciada, mas que permanecia oculta sob o tapete pela burocracia oficial – a crise do controle aéreo no país. No dia 26 de outubro, parte dos 2.700 controladores de vôo – em sua maioria militares – deflagrou uma operação-padrão. Seu objetivo era protestar contra as más condições de trabalho a que são submetidos, o que, além de cobrar seu preço em sacrifício pessoal, coloca em risco os 4.000 vôos que diariamente cruzam os céus brasileiros. Esse risco se confirmou no caso do acidente com o Boeing da Gol, que caiu na selva após se chocar com um jatinho Legacy. Na semana passada, a Aeronáutica confirmou a informação, publicada em primeira mão por VEJA, de que ainda em São José dos Campos os pilotos do Legacy receberam autorização do controle aéreo para voar à altitude de 37.000 pés até Manaus, o que acabou colocando-os em rota de colisão com o Boeing.

Acuados pelas evidências de que erros do controle aéreo contribuíram para o desastre, os controladores decidiram que, diante do radar, passariam a monitorar apenas catorze aeronaves cada um, como manda o regulamento, e não vinte, como vinha acontecendo. Como isso significa ter menos aviões nos céus, as autorizações para decolagens – e, conseqüentemente, os vôos – começaram a sofrer atrasos num efeito de bola de neve. O resultado foi a maior situação de caos já registrada na história da aviação brasileira. Nos principais aeroportos, durante toda a semana passada, houve cancelamento de vôos ou atraso nos embarques que chegavam a vinte horas. Passageiros se amontoavam nos balcões das companhias aéreas para obter informações que os funcionários não tinham – era imprevisível quando cada vôo seria liberado pelo controle aéreo. Outros passageiros dormiam nos bancos, sobre as malas. Alguns, já dentro do avião, tinham de aguardar horas para decolar. A situação ficou pior na quinta-feira, no feriado de Finados, quando houve atrasos em 600 vôos, principalmente na Região Sudeste. Durante a madrugada da quinta-feira, como os controladores ampliaram ainda mais o intervalo entre uma decolagem e outra, o tráfego aéreo simplesmente parou, causando o primeiro apagão da aviação brasileira.

O comando da Aeronáutica tentou contornar a situação com algumas medidas de emergência. A primeira foi limitar a circulação de jatinhos e táxis aéreos – com isso, um contingente adicional de 6 000 aviões foi forçado a permanecer no solo, ampliando o apagão aéreo. Esse apagão deixou expostos o descaso das autoridades com um serviço essencial para a sociedade e a fragilidade do controle de tráfego aéreo no Brasil. Antigamente, só os ricos voavam. Hoje, o avião é o principal meio de transporte para turistas de todas as classes sociais e um instrumento de trabalho indispensável na maioria das profissões. Há dez anos, 23 milhões de pessoas voavam anualmente no Brasil. Agora, são 48,5 milhões. A segurança dessa legião de passageiros é confiada a um sistema com falhas alarmantes. Conta-se hoje com 2.700 controladores de tráfego aéreo, mas para que o serviço fosse feito de forma confiável seriam necessários pelo menos 3.500.

Há quinze anos, uma equipe de controle aéreo trabalhava com onze controladores. Hoje, a maior parte das equipes trabalha com nove, mesmo o tráfego aéreo tendo dobrado nesse período. O resultado é a sobrecarga de trabalho, particularmente penosa para quem precisa ficar de olhos grudados numa tela, com extrema atenção, monitorando a rota de uma dezena de aviões para evitar acidentes. Além disso, despreza-se a necessidade dos controladores de fazer um intervalo a cada duas horas trabalhadas. "O controlador precisa visualizar cada avião, mas, se ele não faz pausas no trabalho, chega uma hora em que não consegue prestar atenção a todos os aviões, o cérebro não processa a informação que está na tela", diz o consultor de aviação Renato Cláudio Costa Pereira, ex-secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional. "Por isso, quanto mais o controlador trabalha no limite, maior é a possibilidade de ele falhar", completa.


Bruno Miranda/Folha Imagem
Aviões sem autorização para decolar em São Paulo e balcão da Gol invadido no Rio de Janeiro: a paciência se esgotou
Domingos Peixoto/Ag. O Globo

O controle do tráfego aéreo brasileiro também é prejudicado por problemas técnicos e de infra-estrutura. Em Brasília, para se comunicar com as aeronaves, os controladores utilizam até cinco freqüências de rádio por setor do espaço aéreo, mas nenhuma funciona direito. Para driblar as dificuldades, eles fazem o que chamam de "ciranda das freqüências". A operação consiste em mudar de freqüência de maneira intermitente até encontrar uma que funcione bem. Para dificultar ainda mais o trabalho dos controladores, há radares no Cindacta 1 com trinta e até quarenta anos de idade. Eles funcionam, mas têm alcance limitado e entram em conflito com os softwares modernos que processam as informações vistas na tela. Isso significa travamentos freqüentes do sistema, que podem demorar alguns minutos para ser percebidos pelo controlador.

Segundo os especialistas, o primeiro passo para contornar a crise no setor é investir na formação e contratação de novos controladores. Há três anos, o Conselho de Aviação Civil (Conac), que elabora políticas nacionais de aviação civil, enviou à Presidência da República um relatório que apresentava os problemas e recomendava investimentos nessa área. O documento foi ignorado. O ministro Waldir Pires, da Defesa, que admitiu ter sido pego de surpresa pela crise, anunciou a contratação em caráter temporário de sessenta controladores. Também estuda conceder um reajuste à categoria, que hoje ganha salários iniciais na faixa de 1.500 reais. Não é simples, pois os controladores são na maioria sargentos da Aeronáutica. O reajuste forçaria a revisão de toda a folha de pagamento da Aeronáutica.

Dinheiro para contratar controladores em caráter permanente não falta – bastaria que o governo federal estivesse disposto a gastar na melhoria do controle do tráfego aéreo a mesma verba que concedeu ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra nos últimos quatro anos: 22 milhões de reais. Seria o suficiente para pagar um ano e meio de salário dos 800 controladores necessários para completar os quadros do controle aéreo. Infelizmente, a situação é inversa: o Brasil gasta com a proteção de vôo menos do que o Orçamento autoriza. Só 285 milhões de reais dos 531 milhões de reais autorizados foram efetivamente repassados.

Em um prazo mais longo, as soluções para o controle do tráfego aéreo apontam para outra questão – é voz corrente entre as companhias aéreas e os especialistas que para modernizar o sistema é preciso retirar sua administração das mãos da Aeronáutica e entregá-la a entidades civis. Hoje, o Brasil é um dos raros países em que o controle aéreo de aviões comerciais e particulares é militarizado. Na semana passada, o ministro da Defesa, Waldir Pires, anunciou que colocará em debate a desmilitarização desse setor no Brasil. É uma boa notícia. Nas mãos da Aeronáutica, o controle do tráfego aéreo da aviação civil se transforma numa caixa de segredos. Sob a alegação de segurança nacional, a Aeronáutica reluta em prestar contas sobre um serviço que influi na vida de milhões de brasileiros. Para efeito de comparação, é como se o órgão que cuida do trânsito numa grande cidade se recusasse a alertar a população sobre vias congestionadas ou a fornecer informações sobre acidentes – mesmo quando solicitadas por parentes das vítimas. Faltam dados públicos sobre a situação da infra-estrutura, a qualidade dos equipamentos ou mesmo se existem estudos para sua modernização.

Uma das reivindicações dos controladores é exatamente a desmilitarização. Para eles, isso traria benefícios imediatos. Como militares, eles estão sujeitos às leis e à rotina do quartel. Não podem questionar ou contrariar ordens superiores, sob risco de punição, e são obrigados a aceitar convocações para paradas militares, plantões de guarda e cerimônias de passagem de comando, mesmo em dias de folga. Com o controle do tráfego aéreo nas mãos da Aeronáutica, também não existe transparência sobre o destino das taxas cobradas das companhias aéreas pelo serviço. Taxas que, em última análise, influem nos preços das passagens. "Se as vultosas taxas cobradas das companhias aéreas fossem aplicadas em melhorias no controle do tráfego, não haveria problemas de falta de mão-de-obra e os controladores seriam certamente mais bem remunerados", diz André Castellini, consultor da Bain & Company, que atua no setor de aviação civil. A estimativa é que 1,9 bilhão de reais do Fundo Aeronáutico, valor arrecadado com as taxas de aeroporto, está retido no Tesouro para ajudar a garantir o superávit nas contas federais. Se o governo agir rápido, ainda dá tempo de garantir a tranqüilidade nos aeroportos nos feriados de fim de ano.




Foto Alberto Cesar Araujo/Folha Imagem

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