Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 19, 2005

Xico Vargas A polícia que o Rio criou

NO MÍNIMO
Estranho não é que a Polícia Militar do Rio de Janeiro se recuse a entrar em favelas para recuperar automóveis roubados e localizados através de sensores que falam com satélites. Surpreendente é que isso ainda espante alguém. A elite que agora grita contra a omissão policial é a mesma que preferiu a moita, na construção da Linha Vermelha, quando os traficantes das favelas espalhadas no trajeto acertaram o relógio-ponto dos canteiros de obra. A regra era: das oito da manhã às seis da tarde, obra. Do anoitecer ao amanhecer, droga. E estamos conversados. Não houve valente que piasse.

Quando personagens de tramas dessa natureza resolvem cuidar de interesses muito específicos fingem não ver o que vem pela frente. As empreiteiras olharam para o dinheiro no caixa – grosso, certamente, já que patrocinou churrascos semanais e torneios de futebol nas comunidades por mais de um ano; o governo contentou-se com o pão e o circo para aquietar as galés; e o pessoal que viaja no convés superior ficou feliz com a estrada nova. Com isso, fechou-se o pano sobre o que parecia o melhor dos mundos. Às vezes custa-se a perceber, mas um dia a conta chega.

A polícia que hoje não encara dono de morro para resgatar carro de madame aprendeu com a elite que negociar dá mais dinheiro. E quando dói é nas costas alheias. Há mais de uma década não só juventude dourada ou velhos viciados do Rio fazem acordos com traficantes. O prefeito e o governador também fazem. Favela-Bairro, da prefeitura, ou Casa da Paz, do Estado, são fregueses de caderno. Está por ser descoberta uma obra ou providência desses projetos que não tenha sido licenciada pelo tráfico. A cidade inteira sabe, mas disfarça. Até aplaude jogador de futebol que carrega o telefone do traficante na agenda do celular. Mas quando perde o automóvel põe a boca no mundo. No resto do tempo acha que favela é gueto, lugar de bandido, negro e pobre.

Constrói-se nesse raciocínio o sucesso crescente das milícias, como se denominam os grupos que ganham terreno nas favelas. São matadores que encantam a classe média porque acredita-se que encarnem os mocinhos. Como os pistoleiros que as cidades do oeste americano contratavam para livrá-las de arruaceiros e ladrões de gado. Por aqui já chegaram à política com boa votação em bairros de classe média alta e seduzem o carioca por histórias como a do engenheiro R., morador do Itanhangá, área controlada por uma dessas quadrilhas.

Há um par de anos R. voltava para casa à noite pela estreita e sinuosa estrada do Itanhangá, bairro ao lado da Barra da Tijuca, quando alguns homens bloquearam-lhe o caminho. Ficou sem o Mercedes. Por muita gentileza deixaram-lhe o celular com o qual ligou para casa e pediu resgate. Ao sair no portão do condomínio onde morava a família, a filha do engenheiro, aflita, pediu pressa ao porteiro porque o pai havia sido assaltado e perdera o carro. O funcionário não disse nada. Depois que a moça saiu, discretamente procurou um telefone. R. voltou, notificou a polícia e preparou-se para acionar a seguradora. Achava que a conta ficara o mais barato possível. Perdera o carro mas estava inteiro e em casa.

Menos de 48 horas depois recebeu um telefonema. Uma voz de homem o informou que o automóvel estava no estacionamento do supermercado Freeway, na Barra, com chaves, documentos e talão de estacionamento no porta-luvas. Encontrou-o como indicado. E lavado. A vizinhança comemorou. Era obra da mineira, a milícia que há muitos anos controla o Rio das Pedras, favela vizinha de R.

Nem quando, nos dias seguintes quatro corpos foram encontrados em pontos próximos ao local do assalto questionou-se que aquele talvez não fosse o método mais apropriado de acabar com o crime. Ao contrário, a letalidade da mineira foi enaltecida como contraponto eficaz à inépcia da polícia. Graças a ela, dizia-se, nos quase 12 quilômetros que separam o viaduto do Joá, no início da Barra da Tijuca, da fábrica da Ambev, já em Jacarepaguá, as pessoas podem andar pelas ruas sem medo e a qualquer hora.

É o lugar mais seguro da cidade costumam dizer os moradores, que há muito já não trancam portas e janelas em suas casas. É verdade. O solavanco por que passou o engenheiro foi o último de que se teve notícia na região. As favelas da área, como a mineira crescem em ritmo acelerado sob as bênçãos da prefeitura e da polícia. O chefe da milícia, num acordo costurado pelo deputado Rodrigo Maia, ganhou apoio do prefeito e hoje tem voz e voto na Câmara de Vereadores.

Como nas favelas os últimos a serem ouvidos são os que nelas buscam morada, quase não se fala que em Rio das Pedras e aglomerados vizinhos a lei é dura e o pedágio alto. Mais do que nos morros onde manda o tráfico, nas favelas das milícias o domínio é absoluto. Todos pagam. Do morador ao dono da farmácia, numa lista que junta a birosca, o açougue, a lanchonete, o mercadinho ou qualquer outra atividade comercial. É a taxa de proteção, uma espécie de condomínio como se chama por lá. Quem não paga – ou engrossa – dança.

Dança também que tenta vender drogas (usar pode, discretamente), quem rouba, pendura contas no botequim e se faz de esquecido, e até quem estica o olho para a mulher do próximo (ou marido da próxima). Nesse caso, quando a queixa chega à milícia, o acusado (solteiro ou casado) ganha menos de 24 horas para deixar a favela com a roupa do corpo. Seja próprio ou alugado o barraco, com o que tiver dentro, passa à posse da mineira. Esse é o cenário que já se estende por uma dezena de favelas da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

E quem são os destemidos milicianos? Na maioria, ex-policiais e apaniguados. Mas há também policiais da ativa. Os mesmos que, fardados, recusam-se a entrar em favela para combater traficantes ou resgatar automóvel roubado. Descobriram que roubada é entrar numa dessas em troca do salário, quando dá muito mais prestígio e dinheiro botar para quebrar em nome da milícia. Essa é a nova segurança que a classe média e a elite estão construindo na cidade. Da mesma forma que um dia acharam bonito chamar de "Homens de ouro" o grupo de larápios que se aninhou na polícia. Só muito tarde perceberam-se diante de especialistas em achacar bandidos, procedimento hoje considerado padrão por quase toda a corporação.

Por isso é que a ninguém mais espanta quando o Vitor Lomba, pai de Pedro Dom, o assaltante mais procurado pela polícia este ano, diz que seu filho foi executado pelos policiais porque já não tinha como pagá-los; que nos últimos meses assaltava para pagar os traficantes, com os quais pegava dinheiro para entregar à polícia. Ex-policial, Lomba sabe como as coisas funcionam no escurinho das viaturas. Ele mesmo, em pelo menos uma oportunidade teria levado dinheiro à Polinter para que soltassem o filho. Disse com todas as letras aos repórteres Ana Cláudia Costa e Daniel Engelbrecht e não se soube de ninguém que o tenha desmentido.

Atenção, leitor: até agora nenhuma autoridade o chamou de mentiroso, ameaçou processá-lo por danos morais, crime contra honra ou coisa que o valha. Tudo que o chefe de polícia, Álvaro Lins, disse foi: "Isso ele vai ter que provar". Como se a polícia fornecesse recibo de seus achaques. Mora, portanto, na perda pela sociedade da capacidade de indignar-se o modelo de polícia que a cidade criou. Isso já está consagrado. Da mesma raiz brota o sistema de segurança que se está construindo. Em mais alguns anos as milícias e as favelas certamente terão dominado quase tudo e possivelmente o tráfico – pelo menos no modelo como é feito hoje – terá sido reduzido.

Talvez aí o Rio seja apresentado a um tipo de regime que Nova York conheceu nos anos 1940/50, quando em vários bairros todas as casas e lojas eram obrigadas a pagar taxa de proteção é só podiam contratar empregados indicados pelos grupos que dominavam cada área. O que está pintando é um amplo esboço disso e, ao que parece, estamos gostando.

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