Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 19, 2005

Viagem equivocada Carlos Alberto Sardenberg

O ESTADO DE S PAULO

Agora é o Paraguai, sócio fundador do Mercosul, que ameaça negociar separadamente um acordo de livre comércio com os EUA. Na semana passada, o presidente Lula esteve na Guatemala, reuniu-se com presidentes da América Central para discutir comércio e a presença de empreendimentos brasileiros na região. Nem precisava. Perdeu tempo.

Empresas brasileiras já manifestam interesse em se instalar na região, mas por motivos diferentes dos imaginados por Lula, que pensa numa integração dos países latino-americanos para fazer um bloco sem os EUA. A América Central já assinou acordo de livre comércio com os EUA. Companhias brasileiras, na área têxtil, por exemplo, pensam em levar fábricas (e empregos) para a região, de onde aproveitariam as novas facilidades de exportação de lá para o rico mercado americano.

Da Guatemala Lula embarcou para Nova York, onde participou de reuniões da ONU. Entre outros pontos, insistiu em duas idéias: a de cobrar uma taxa nas passagens aéreas internacionais para financiar programas de combate à fome administrados pelas Nações Unidas e a proposta de reformar a ONU para incluir mais países, o Brasil entre eles, como membros permanentes do Conselho de Segurança.

A idéia da taxa nem sequer é pauta séria nos debates internacionais. A direção da ONU está sob suspeita por ter sido apanhada em grossa corrupção e crassa ineficiência na gestão do programa Petróleo por Comida, aplicado no Iraque na época de Saddam Hussein. Sob bloqueio econômico internacional, o Iraque teve permissão de exportar petróleo só para comprar alimentos e remédios. Funcionários da ONU foram encarregados de organizar esses negócios entre compradores de óleo e vendedores das contrapartidas – e acharam como meter algum dinheiro no próprio bolso. Saddam e seu pessoal arrecadaram outra parte, de modo que sobrou pouca comida e pouco remédio para os pobres iraquianos.

O episódio evidenciou mais uma vez o problema do combate à pobreza: não está propriamente na arrecadação de fundos, mas na forma de aplicá-los de modo eficiente. Há inúmeros exemplos parecidos com o caso iraquiano, especialmente na África, onde o dinheiro da solidariedade mundial acaba nas mãos das elites e dos ditadores de plantão.

Nesse quadro, vem Lula propor uma taxa sobre passagens aéreas no mundo todo – baratinha, diz ele, um ou dois dólares, será que não se pode dar isso? – que exigiria estruturas burocráticas para arrecadar, guardar e gastar. Ou seja, não dá nem para começar essa conversa.

Ao contrário do que diz Lula, antes dele muita gente já estava preocupada com a miséria, especialmente na África. Mas o que se esperava de Lula, quando se elegeu, era alguma inovação nos programas de combate à pobreza, como o tão anunciado Fome Zero. Há dois anos, dirigentes do mundo todo aceitaram um convite do presidente brasileiro para tratar disso em Nova York. Depois, o encanto foi morrendo. O Fome Zero não era isso, o próprio governo Lula colocou sua ênfase nos programas de bolsa – tipo renda mínima, modalidade já conhecida no mundo todo e, aliás, introduzida no Brasil pela administração FHC.

A segunda motivação de Lula em Nova York também não prosperou. A reforma do Conselho de Segurança não sai sem a concordância, entre outros, de EUA e China. Com os EUA o governo petista mantém uma relação de pontapés e, portanto, não pode esperar apoio. Com a China o presidente Lula julgou ter estabelecido "relações estratégicas" ao reconhecê-la como "economia de mercado", pleito dos chineses para ter sua vida facilitada no comércio internacional.

Mas a China não quer saber do Japão no Conselho de Segurança, e o Japão é sócio do Brasil na proposta de reforma. Não vai dar certo. Os países africanos, outro alvo preferencial da diplomacia (e das viagens) de Lula, também não compraram a proposta brasileira, que não obteve amplo apoio nem na América do Sul.

Antes dessas viagens, Lula havia estado no Peru para assinar acordo destinado a construir uma rodovia do Brasil até o Pacífico, integrando países da região. Foi mais um passo de sua política de juntar primeiro os sul-americanos e depois os latino-americanos num bloco autônomo, independente dos EUA, para, assim, todos unidos, tratar com os americanos olho no olho, olhando na cara, como gosta de dizer Lula.

Só que, um, não é certo que haverá dinheiro para a estrada. E, dois, o Peru e os colegas andinos já estão negociando acordos de livre comércio com os EUA. E por que fazem isso? Porque são vendidos ao imperialismo? Porque suas elites são colonizadas? Fazem isso pelos mesmos motivos que levaram o governo chileno, presidido pelo socialista Ricardo Lagos, a assinar acordo comercial com os EUA. Porque um excelente meio de encurtar o caminho do crescimento é vender aos consumidores norte-americanos, os que mais gastam no mundo todo. Como faz a China, nossa parceira "estratégica", que está mais preocupada com o presidente da Wal-Mart do que com o presidente do Brasil, pelo simples motivo de que vende mais para a cadeia de supermercados.

Tudo considerado, a base da diplomacia do governo Lula é um fracasso monumental. A idéia de juntar os países do Sul (os pobres, emergentes e/ou em desenvolvimento) para que estes negociem cara a cara com os ricos do Norte não faz nenhum sentido, especialmente se o Brasil coloca, como faz muitas vezes, que existe a opção entre se alinhar com os EUA ou com os "hermanos".

A opção não existe. Peru, Guatemala e Chile obviamente querem acordos e negócios com o Brasil, mas precisam mais ainda dos mercados e dos investimentos dos EUA. Por isso, se houver opção, se forem levados a escolher, está na cara que vão escolher negócios com o Norte, como ameaça fazer o Paraguai.

E é mais ou menos o que está acontecendo. O Mercosul faz água, as negociações com União Européia e Alca estão bloqueadas, enquanto há intensa negociação no mundo todo para acordos comerciais regionais ou diretos com os EUA e a Europa. Não há base para uma união dos países do Sul, pois seus interesses ora coincidem – como é o caso dos exportadores agrícolas, que, aí sim, se juntam – e ora não coincidem – como em vários casos com a China, com a qual todos competem nos produtos industrializados. Em resumo, como só a diplomacia brasileira, além da venezuelana e cubana, trabalha com essa idéia de "nós contra eles", o Brasil perde uma atrás da outra. Nem vizinhos ideológicos, como o Uruguai, votam com o Brasil.

Não se poderia imaginar equívoco maior.

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