Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 03, 2005

Roberto Pompeu de Toledo Uma bela cena num filme ruim

VEJA

Gabeira faz crer que quem sabe um dia
sejam derrotadas a safadeza e a estultície

Severino José Cavalcanti Ferreira nasceu em João Alfredo, Pernambuco, em 1930. No ano entre todos memorável de 1964, elegeu-se prefeito de sua cidade natal. Estava por cima. Abrigava-o a legenda da UDN, partido que apoiou o golpe militar contra o governo Goulart. Fernando Paulo Nagle Gabeira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1941. Em 1964, era redator do Jornal do Brasil e no dia 1º de abril tentou entrar na fila da distribuição de armas ao povo que seria promovida pelo almirante Cândido Aragão. Estava por baixo. Não havia armas a distribuir, não havia resistência.

No ano de 1968, Severino Cavancanti cumpria seu primeiro mandato como deputado estadual em Pernambuco. Agora pertencia à Arena, o partido que dava sustentação aos governos militares. Fernando Gabeira selou, nesse mesmo ano, num encontro com um militante mais antigo, na Praça Antero de Quental, no Leblon, seu ingresso num movimento clandestino de combate ao regime. Era uma tarde bonita. Gabeira olhou em volta e estranhou que tudo continuasse no mesmo lugar: as babás que passeavam com as crianças na praça, os carrinhos da Kibon que vendiam sorvete na Avenida Delfim Moreira.

Em 1969, Gabeira integrou o grupo que seqüestrou o embaixador americano Charles Burke Elbrick. Em 1971, Severino Cavalcanti foi eleito para o segundo dos sete mandatos de deputado estadual que exerceria em Pernambuco. Em 1973, no exílio no Chile, Gabeira sofreu nova derrota com o golpe que derrubou Salvador Allende do poder. Em 1975, Severino Cavalcanti tornou-se o vice-líder da bancada da Arena da Assembléia pernambucana. Gabeira agora vivia na Europa. Na Suécia, exerceu a função de condutor do metrô.

Em 1978, Severino Cavalcanti recebeu a medalha da Soberana Ordem dos Cavaleiros do Estado de São Paulo e, no ano seguinte, a Pernambucana do Mérito, classe ouro. Em 1979, Gabeira voltou ao Brasil, beneficiado pela anistia, e apresentou-se na Praia de Ipanema com uma minúscula sunga de crochê. A sunga era um manifesto político. Significava que a política do corpo se acrescentara a seu ideário. Em 1980, Severino Cavalcanti perpetrou sua primeira ação de repercussão nacional ao denunciar o padre italiano Vito Miracapillo, que se recusara a celebrar missa no dia 7 de setembro em protesto contra o regime. A denúncia foi acolhida pelo ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o padre, expulso do Brasil.

Se a vida de cada pessoa pudesse ser traduzida em rabiscos de eletrocardiograma, a de Gabeira configuraria uma disparada de impulsos que desembestam em tropelia, enquanto a de Severino Cavalcanti exibiria a linearidade da planície. Uma é complexa, a outra simples. A primeira tem a marca da inquietação, responsável tanto por explorações inovadoras como por equívocos, a segunda se nutre da acomodação fronteiriça e da cautela esperta. Esses dois homens tão diferentes encontraram-se, em 1995, onde os diferentes devem mesmo se encontrar: a Câmara dos Deputados. Por coincidência, iniciam no mesmo ano uma carreira federal, Gabeira eleito pelo Partido Verde do Rio de Janeiro, Severino pelo PFL de Pernambuco. Gabeira se destacaria por causas novas como a do meio ambiente ou polêmicas como a descriminação da maconha. Severino, pela defesa do aumento de salário dos deputados e pelo direito de nomear parentes para o serviço público.

Na terça-feira passada, quem assistiu à cena do deputado Fernando Gabeira, o dedo em riste, investindo contra o colega Severino Cavancanti, durante sessão plenária da Câmara, viu uma cena bela, de recuperar a crença no Parlamento. Como no começo desta história, Severino estava por cima, encarapitado na presidência da mesa, e Gabeira por baixo, um cavaleiro solitário no centro do redemoinho que cerca o microfone dos apartes. Naquela manhã, a Folha de S.Paulo trouxera uma entrevista em que Severino Cavalcanti negava a existência do mensalão e defendia que as punições no Congresso se limitassem a "censuras", sem chegar ao rigor das cassações de mandatos.

"Vossa Excelência está se comportando de maneira indigna", começou Gabeira. Ele falava com a fúria dos justos. Lembrou que até defender empresa acusada de explorar trabalho escravo Severino já fez – é o caso de uma destilaria pernambucana para a qual fez gestões, meses atrás. "Vossa Excelência está em contradição com o Brasil", acrescentou, fazendo-se porta-voz de todos quantos querem puxar o Brasil para a frente, na face de alguém cujo propósito notório é empurrá-lo para trás. É ironia da grossa que Gabeira, ícone da esquerda no passado e hoje paladino das causas de vanguarda, atacasse um estado de coisas semeado por obra e graça do atual governo enquanto a defesa ficava por conta de Severino. "A sua presença na presidência da Câmara é um desastre para o Brasil e para a imagem do país", disse ainda Gabeira, e encerrou prometendo iniciar um movimento para derrubá-lo. Ficou no ar a esperança de que um dia, quem sabe, contra todas as evidências oferecidas pela hora presente, possam ser derrotadas a mediocridade, a safadeza e a estultície.

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