Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 10, 2005

Roberto Pompeu de Toledo Nos labirintos do poder

VEJA

O leitor acha fácil a tarefa de abrir a porta
para
o augusto governante? Aprenda que não

Governante esperto era aquele. Jamais escrevia o que quer que fosse e jamais assinou um documento. Tinha sempre ao lado, nas audiências, o auxiliar chamado de "ministro da Pena", cujas atribuições consistiam em anotar suas ordens. O governante falava baixo, pouco movendo os lábios, o que obrigava o ministro da Pena a colar o ouvido junto à sua boca, qual um microfone. Acresce que as ordens eram em geral confusas, o que duplicava o trabalho do auxiliar – mas que sabedoria, que modo mais engenhoso de governar! Caso uma determinada decisão fosse do agrado geral, seria mais uma prova de sua inigualável sapiência. Caso desagradasse, a culpa seria do ministro, que não entendera suas ponderações.

O governante em questão é o antigo imperador da Etiópia Hailé Selassié, o "Escolhido de Deus", o "Rei dos Reis", que governou de 1930 a 1974. Selassié era baixinho, o que impunha a necessidade de um outro singular auxiliar a seu lado – o "colocador de almofadas". Assim que ele se sentava no trono, esse profissional colocava uma almofada a seus pés. A ação tinha de ser executada com rapidez e precisão, para que Sua Majestade não ficasse com os pés a balançar ridiculamente no ar, como uma criança. Os mais distraídos argumentariam que um trono de assento mais baixo resolveria mais simplesmente a questão. Mas e a imponência? E o plano necessariamente mais alto em que se deve situar o soberano? O colocador de almofadas era imprescindível mesmo nas viagens. A cada subida num trono, entrava em ação. E, como os tronos podiam ser de diferentes alturas, levava almofadas de diversas dimensões. No total, possuía 52 diferentes almofadas. Com o tempo, adquiriu tal domínio de sua especialidade que era só pôr os olhos num trono e já sabia a qual almofada recorrer.

Essas histórias estão em O Imperador, de Ryszard Kapuscinski, livro de 1978, mas só agora lançado no Brasil (Companhia das Letras). Kapuscinski, jornalista polonês com muitos anos de experiência na África, entrevistou antigos assessores e funcionários palacianos, depois da deposição de Selassié, com a idéia de oferecer um quadro do regime visto de dentro. Não bastasse o colocador de almofadas, havia também o abridor de portas do imperador. Pensa o leitor que era tarefa fácil? Exigia perspicácia e treino para abri-las no preciso instante – não cedo demais, para não dar a impressão de querer despachar logo o monarca do salão, nem tarde demais, de modo a obrigá-lo a diminuir o passo, ou mesmo parar.

A Hora das Nomeações consistia numa cerimônia em que, em filas, as pessoas se aproximavam, uma a uma, do soberano, e, inclinadas até o chão, ouviam da imperial boca o cargo para o qual tinham sido nomeadas. Os nomeados recuavam cheios de mesuras, mas, assim que deixavam o salão, se tinham ganho posto que valia a pena, metamorfoseavam-se em seres de postura firme e decidida. As cabeças, até há pouco capazes de manobras normais, ganhavam, logo após a nomeação, segundo um dos entrevistados de Kapuscinski, "uma extraordinária limitação de movimentos, passando a dispor de apenas dois: o de se voltar para o chão, quando em presença do augusto senhor, e o de se voltar para o alto, quando em presença das demais pessoas".

O nomeado precisava ter cuidado. Nada de avançar reformas ou projetos audaciosos. Não que o imperador os desprezasse. O que não se podia era ousar passar-lhe à frente nas iniciativas. Se um ministro desejasse introduzir modificações em sua área, era mister fazer o imperador crer que a idéia tinha nascido de seu próprio e privilegiado cérebro. "Para ser sincero, devo admitir que o bondoso amo apreciava mais os maus ministros", conta um depoente. Assim, ele ganhava chance "de se destacar, pelo contraste". Era do agrado do imperador, por outro lado, que os ministros trabalhassem em favor dos próprios patrimônios. "Não consigo me lembrar de um só caso em que o gracioso monarca tenha anulado uma promoção ou expulsado alguém do palácio por corrupção", diz outro depoente. A ordem era: "Corrompam-se à vontade, desde que permaneçam leais a mim!".

Seria fácil trazer as histórias do livro para circunstâncias mais próximas. Se tivessem seguido a regra de nada escrever nem assinar documentos, por exemplo, muitos personagens do presente escândalo brasileiro, de Genoínos a Severinos, estariam em melhor situação, e um ex-presidente seria poupado do constrangimento de pedir que esquecessem o que escreveu. Mas não é o que vem ao caso. O alcance do livro é muito maior. Embora tratando de uma situação em particular, e das mais grotescas, oferece lições sobre o poder valiosas como as de Maquiavel em O Príncipe. Ao ser deposto, Selassié foi conduzido até o pátio do palácio, onde estava estacionado um Volkswagen. O oficial que o dirigia desceu, abriu a porta, puxou o encosto do banco dianteiro e o convidou a acomodar-se atrás. "O quê? Vocês esperam que eu entre num carro desses?", reagiu ele. Foi seu único protesto. Aquilo era o mais doloroso, em toda aquela situação.

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