Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 02, 2005

A quadrilha leninista DENIS LERRER ROSENFIELD

FOLHA DE S PAULO

O diagnóstico que os grupos de esquerda -sobretudo vinculados ao PT- têm dado para a crise ética que abala o governo federal reside em seu caráter estrutural, como se tudo tivesse como causa o patrimonialismo da sociedade brasileira. Assim fazendo, eles deslocam a atenção da opinião pública e o foco de análise para um problema geral, como se todos os que estivessem no poder fizessem a mesma coisa.


A corrupção é um meio "moralmente" válido segundo uma concepção que tem no partido o seu bem maior


Independentemente da incoerência de tais propósitos com a proposta petista de 25 anos, cujo objetivo seria mudar tudo o que está aí, eles procuram se desresponsabilizar da corrupção pelo PT mesmo estabelecida. Ocultam o verdadeiro problema: o seu caráter sistêmico e leninista, apoiado na concepção de que tudo vale para fortalecer o partido.
Pode-se dizer que a corrupção sistêmica se caracteriza por quatro apoios: partido, governo, empresas estatais e lobistas. Tem-se, assim, um processo de desmonte do Estado via identificação entre o partido e o governo, como se este devesse servir aquele. Há uma dissolução gradativa das funções do Estado que se traduz pela sua inoperância e pela incompetência dos quadros partidários chamados para os cargos administrativos. Assinale-se que os problemas maiores de corrupção não dizem respeito a bens apropriados pelos operadores, mas à drenagem exaustiva de recursos para o partido. O enriquecimento ilícito individual é o resultado necessário, porém marginal, de um processo de conquista do Estado pelo partido.
Pode-se nomear a ação dirigente do Campo Majoritário de criminosa por terem eles formado uma quadrilha. Se ficarmos, no entanto, restritos ao conceito de quadrilha, perderemos uma importante faceta da situação atual. Qualificaremos melhor a quadrilha se a nomearmos de leninista. Quadrilha, pois se trata de uma organização criminosa que age à margem da lei, não respeitando a ordenação jurídica existente, apropriando-se pela corrupção de recursos públicos que são utilizados privado-partidariamente. A tipificação penal de tais atos vai da corrupção ativa à passiva, passando por formação de quadrilha, peculato e outros. Leninista, pois o seu objetivo consiste no fortalecimento do partido, tendo em vista a implantação posterior de uma sociedade "socialista", que teria como modelos tanto a Cuba de Fidel como a "transição" ora operada por Chávez na Venezuela. Na melhor esteira do leninismo, tal concepção despreza e ignora a democracia representativa e os valores morais.
A identificação entre o partido e o Estado operada pelo PT está baseada na concepção de que a democracia representativa é apenas formal e burguesa, sendo um mero instrumento de conquista do poder. O fato de o atual escândalo ter sido decretado pela compra de deputados -o vulgar "mensalão"- é altamente ilustrativo, pois consiste na própria desmoralização dos representantes políticos e no enfraquecimento do Poder Legislativo. A compra de deputados e o aviltamento da representação política daí decorrente são somente o resultado da concepção própria de uma esquerda autoritária que visa à conquista e à manutenção do poder.
A sua face "ética" reside no menosprezo completo dos valores morais, pois os fins justificam os meios. A corrupção é um meio "moralmente" válido segundo uma concepção que tem no partido o seu bem maior. Dignas de nota são as aparições de Delúbio, Silvinho, Marcelo Sereno e José Dirceu nas comissões do Senado e da Câmara, pois em nenhum momento eles expressam ou reconhecem "culpa" ou "remorso".
Ora, os sentimentos de culpa e de remorso são frutos da infração de valores morais. Se não há o reconhecimento dessa infração, esses sentimentos não se manifestam. Eles estavam e estão imbuídos da idéia de que agiram corretamente, pois estavam a serviço do partido. Se "erraram", foi por não terem conseguido atingir os seus objetivos, tendo sido o seu projeto desmascarado. O erro foi estratégico, relativo a uma incorreta avaliação das condições objetivas, pois são hoje reféns de um processo do qual se estimavam os autores. O erro foi relativo ao fracasso e não decorrente de problemas de ordem moral.
O fato de essa quadrilha leninista ter fracassado não tem se traduzido pela necessidade de uma revisão doutrinária do PT. Esse é o aspecto mais dramático da situação atual. Não há um processo em curso de revisão programática, pois o que presenciamos é uma luta interna de poder entre grupos e tendências que comungam da mesma concepção genérica do socialismo.
O problema básico, segundo essa avaliação partidária, seria decorrente de que o governo abandonou praticamente as bandeiras históricas do partido, tendo se rendido ao "neoliberalismo", ao "capitalismo" e à "democracia representativa". O colapso ético do partido teria como causa não o seu "socialismo" em suas distintas formulações, mas a conversão do governo às práticas capitalistas. Os velhos ideais continuariam válidos, a desmoralização petista se devendo ao seu abandono.
Eis por que o seu verdadeiro alvo consiste não na moralização, mas em abater a atual política macroeconômica, pois assim as portas se abririam para uma verdadeira transição ao socialismo ou para a "utopia", como dizem alguns de seus representantes.

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