Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 06, 2005

Os intelectuais e a crise BORIS FAUSTO

FOLHA DE S PAULO

Entre os muitos produtos da crise, ganhou algum destaque a discussão sobre o papel dos intelectuais. Indo direto ao assunto, iniciemos com uma pergunta: quem são os intelectuais?
Se quisermos não propriamente uma definição, mas uma descrição aproximativa, diríamos que os intelectuais constituem um grupo social que se distingue por um nível cultural específico, mais voltado para a formulação de idéias abrangentes e pelo objetivo de definir visões do mundo. Desse modo, diferenciam-se de grupos com conhecimentos especializados de ordem prática, como economistas, advogados, ou dedicados a analisar cenários sociopolíticos de maior imediatidade -caso dos jornalistas. Ressalvemos que o recorte não exclui linhas de aproximação, nem pretende sugerir uma gradação de hierarquia entre "sábios pensantes" e pessoas apenas especializadas.


O culto ao "Cavaleiro da Esperança" potenciou um traço da nossa cultura, isto é, a crença no herói salvador


Embora situados no plano das formulações mais abstratas, em países como o nosso, os intelectuais tendem também a intervir na vida política, em graus variados. Seu alvo preferencial de atenções concentra-se no poder, seja para criticá-lo, muitas vezes com virulência, seja para se agasalhar, confortavelmente, sob suas asas. Houve até um momento na história do Brasil, no período do Estado Novo (1937-1945), que, com as devidas cautelas, alguns intelectuais desempenham concomitantemente esses papéis.
O grupo intelectual, como se sabe, é essencialmente heterogêneo, ocupando diversas posições no espectro político. Nos países marcados por fortes injustiças sociais, tende a situar-se majoritariamente à esquerda, num arco histórico que vai da social-democracia ao comunismo. No Brasil e em outros países, a corrente comunista ganhou maior influência, por ter atrás de si o aparelho internacional montado pela União Soviética e por contar com um discurso como o marxismo, detentor da "chave da história".
Essa opção de muitos intelectuais redundou na crença nas virtudes do partido único, portador da consciência do proletariado, capaz de realizar a tarefa revolucionária de implantação do socialismo. Redundou também na crença de que essa tarefa vinha sendo efetivada, desde 1917, na União Soviética. Mais ainda, redundou na glorificação de Stálin -guia genial dos povos- e na entronização dos líderes nacionais dos partidos comunistas, no altar-mor do stalinismo. O ícone brasileiro, quase não seria preciso dizer, foi Luiz Carlos Prestes.
O culto à personalidade do "Cavaleiro da Esperança" potenciou um traço da nossa cultura, isto é, a crença no herói salvador, capaz de acabar com o sofrimento do povo, encarnando o partido, cuja linha errática estava sempre certa. Dessa e de outras distorções resultaram o abandono da tarefa da construção da cidadania e a descrença nos princípios democráticos. Por muitos anos, um grande número de intelectuais de esquerda acreditou que "democracia formal" não passava de um simples instrumento, a serviço de um radioso futuro revolucionário.
O relatório Kruschev, a queda do Muro de Berlim, a transformação da China do ícone Mao Tse-tung numa versão peculiar de capitalismo autoritário e o advento do regime militar no Brasil, dolorosamente, abriram os olhos da maioria dos intelectuais de esquerda. No processo de democratização do país, nos anos 1980, um grande número desses integrou-se na construção do PT, alguns com uma perspectiva socialista democrática, outros ainda encantados com o autoritarismo revolucionário e outros ainda a partir de raízes católicas, tingidas de messianismo. Foi uma opção respeitável, por um partido que pretendia organizar a classe trabalhadora e estar à frente dos movimentos sociais.
Mas a ressalva não serve para deixar de lado a grande responsabilidade dos intelectuais de esquerda, por semear muitas ilusões e por colaborar na construção da figura carismática de Lula, em circunstâncias por certo distintas dos tempos do PCB. A trajetória social e as características pessoais do atual presidente, inusitada na história do Brasil, facilitaram essa tarefa. Engendrou-se assim, engatando com as tradições de nossa cultura política, o carisma do herói salvador, por mais que se exaltassem as virtudes da organização partidária. O irmão-gêmeo do carisma foi o desprezo pela bagagem cultural -o pão nosso de cada dia dos intelectuais!-, em nome de uma intuição rara, que fazia do líder carismático "o melhor dentre todos nós". A contrapartida para quem apontasse a inadequação desse caminho ou criticasse as formulações equivocadas sobre a economia e a natureza da sociedade era a rotulação desqualificadora: elitista, preconceituoso, colonizado, neoliberal etc.
Tudo isso acabou como acabou. Hoje, há quem se agarre ao barco que navega num pântano, de quem dele saiu há bom tempo e há quem se entregue a silêncios embaraçados e até a delírios conspiratórios.
Mas essas opções pessoais importam pouco. Importa bem mais a percepção de que os intelectuais podem ter um papel relevante na sua área específica, ou seja, na ampliação de perspectivas, na análise mais abrangente de nossos problemas, na formulação de propostas. Duas condições mínimas para tanto me parecem, porém, indispensáveis: o respeito ao pluralismo democrático e a certeza de que, mesmo para avançar no campo especulativo, é preciso levar em conta o saber técnico e não se desprender da terra, embarcando no mundo dos sonhos.

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