Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 10, 2005

O Brasil desarmou a bomba

VEJA

Entre tantas perguntas ao vento levantadas pelo estouro da quadrilha de petistas que assaltava o Estado, é reconfortante saber que pelo menos para uma delas existe resposta: por que a crise política não detona a economia e o Brasil parece funcionar até melhor enquanto os políticos estão preocupados apenas em manter a cabeça sobre o pescoço? A resposta, quase uma unanimidade entre os analistas brasileiros e estrangeiros, é que o Brasil mudou muito e para melhor. A explicação acima se assenta sobre três pontos essenciais. O primeiro e mais imediato é a robustez dos números da chamada macroeconomia: o saldo da balança comercial atingirá 40 bilhões de dólares e os juros altos funcionam como fator de atração de moeda forte, que anda farta no mercado externo. O segundo, justiça seja feita, deve-se ao fato de que o governo Lula manteve e aperfeiçoou a ordem econômica deixada a ele como um legado pelos tucanos. Enquanto ainda governava, Lula fez passar no Congresso a reforma (possível) da Previdência e uma boa Lei de Falências. O terceiro e mais importante pilar da resposta diz respeito a uma lenta e silenciosa revolução pela qual o Brasil vem passando desde o final dos anos 80 e que agora começa a dar seus frutos.
É uma revolução cultural, de costumes, de práticas empresariais e de fortalecimento das instituições, que resultou numa diminuição drástica do poder dos governantes de produzir desastres econômicos. Resume o economista Maílson da Nóbrega: "Estamos vivendo um ciclo virtuoso, em que a economia não sente os efeitos da crise política e isso, por seu turno, desestimula aventuras econômicas. Além, é claro, de cortar em muito as chances de que um candidato populista venha a empolgar os eleitores na campanha presidencial do ano que vem". Os gregos já diziam há 6.000 anos que de nenhum homem se pode dizer que teve uma vida feliz enquanto ele não morrer serenamente. Sábio enunciado. Muitas vezes, no passado, os brasileiros imaginaram ter atingido um grau civilizatório tal que nos blindava contra infelicidades políticas e econômicas – apenas para sermos desmentidos pela realidade meses depois. Foi assim com a redemocratização e com os inúmeros planos econômicos com que se tentou, em vão, estabilizar a economia. Mas houve exceções. Uma delas foi o Plano Real, que não apenas debelou a inflação como embicou o país rumo a um futuro mais previsível. Tudo indica que o momento atual não é fortuito ou passageiro, mas o indício de um amadurecimento institucional de bases sólidas.


Salomon Cytrynowicz
RETRATO SOMBRIO
Reunião da cúpula do CIP, em 1979: o órgão analisava 1 200 pedidos de aumento de preços todo mês

Não se trata de uma convicção subjetiva. Ela vem dos fatos. Desde maio, quando se divulgou a primeira denúncia de corrupção nos Correios, os investidores só aumentaram suas apostas em favor do Brasil, e não contra. O dólar está em 2,3 reais, abaixo dos 2,47 reais registrados no início da crise. O índice de valorização da Bolsa de Valores de São Paulo aumentou de 23.887 pontos em maio para 29 307 pontos verificados na sexta-feira passada. O mesmo aconteceu com o risco-país, aquele indicador do grau de confiança dos investidores em países emergentes, que caiu de 445 pontos antes da crise para 386 pontos hoje. Quanto menor o risco-país, maior a confiança. Para ilustrar a atual situação em que economia e política andam em vias separadas e antagônicas, VEJA ouviu especialistas – e fez uma enquete entre as cinqüenta maiores empresas privadas brasileiras. As conclusões são reconfortantes. A opinião da maioria do setor coincide com a dos analistas. Ambas as manifestações apontam para o fato de que a integração do Brasil aos mercados mundiais, somada à evolução institucional, podou os poderes explosivos de Brasília sobre a vida econômica do país. Ou seja, os políticos, para ficarmos aqui na expressão do saudoso Severino Cavalcanti, "recolheram-se a sua insignificância". Isso não significa que a política tenha se tornado uma atividade menos vital. Não. Simplesmente, a política perdeu o poder de conduzir a seu bel-prazer os rumos econômicos da nação. A se confirmar essa tese, o Brasil terá atingido o estágio evolutivo que os Estados Unidos vivenciaram sob o governo Ronald Reagan (1981-1989). A chacoalhada do presidente americano foi suficiente para colocar uma pá de cal nas atitudes irracionais dos governos, assim descritas por ele: "Se uma empresa progride, toque imposto nela. Se ela continuar progredindo, cerque-a com regulamentos. Quando ela, finalmente, parar, dê-lhe subsídios".

Os governos perderam esse poder de vida e morte sobre as economias. No Brasil, para entender o alcance dessa nova realidade, é útil lembrar que, há 25 anos, dirigentes-bomba instalados em Brasília, com poderes imperiais, promoviam confiscos, congelamentos de preços e vasta gastança. Só faziam isso porque tinham à mão ampla artilharia. Eis alguns exemplos:

Nos anos 80, o ministro da Fazenda autorizava despesas, expandia a dívida pública e distribuía subsídios. Tudo por fora dos controles do Orçamento. Para isso, usava as armas do Conselho Monetário Nacional (CMN). O órgão chegou a ter 725 atribuições – quase 700 delas de gasto. Hoje, tem basicamente três – todas de controle de gastos.

O Conselho Interministerial de Preços (CIP), que funcionou entre 1968 e 1991, mantinha 330 funcionários para realizar uma operação surreal de analisar mensalmente 1.200 pedidos de aumentos, feitos por empresas fabricantes de 21 categorias de produtos. Esse poder absurdo do Estado tornava desnecessário para as empresas investir em produtividade. Elas não se preocupavam em competir mas em convencer o CIP de que seu produto poderia ser vendido a um preço maior. O CIP não existe mais.

Roberto Stuckert/PR
O ÚNICO RITMO
Lula com o nigeriano: crise não vai mudar os rumos da economia

Quem melhor entendeu a tendência dos governos de extrapolar de suas funções de fiscalizador dos mercados e normatizador da economia foi o economista escocês Adam Smith (1723-1790), autor da obra básica de sua especialidade, Natureza e Causa da Riqueza das Nações. Smith dizia que "não existe arte mais desenvolvida nos governos do que a de aprender com outros governos novas maneiras de arrancar dinheiro do bolso das pessoas". No fundo, é isso que está em jogo no amadurecimento institucional: as pessoas aprendem maneiras de impedir que o governo enfie as mãos nos seus bolsos e destrua a prosperidade. Nos últimos vinte anos, na imensa maioria dos países ocidentais as sociedades deram um basta à ousadia insana dos governos na política e na economia. O filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) certamente ficaria espantado com essa vitória da sociedade sobre os governos. Hegel dizia que "o povo é aquela parte do Estado que não sabe o que quer".

Nos anos 90, num mundo já plenamente envolvido pela revolução digital, o fechamento do mercado brasileiro tinha o mesmo efeito das górgones da mitologia grega: petrificava quem olhasse para a inovação, para a troca de idéias, para o acesso a novos mercados, para a importação de máquinas mais eficazes e matérias-primas que poderiam dar novo impulso à produção nacional. Pois bem, no decorrer dos anos 90 o povo brasileiro começou a saber o que queria – e, em boa medida, o que ele quer não é exatamente o que os governantes são capazes de entregar.

Duas mudanças ocorridas nos últimos vinte anos foram fundamentais para a construção da "tranqüilidade sistêmica" nacional. Foram elas o controle da inflação, a partir de 1994, e o processo de abertura da economia, iniciado nos anos 90. O primeiro trouxe a economia brasileira à razão. Já a abertura comercial lançou as empresas brasileiras ao mundo real de competitividade. Os resultados são palpáveis.

A produtividade da indústria nacional cresceu 80% nos anos 90.

Estudo do Banco Mundial indica ainda que a renda per capita nos países em desenvolvimento que se lançaram ao mercado mundial cresceu, em média, 4,8% na mesma década. Nas nações fechadas, o ritmo foi bem menor. Ficou em 1,5%.

Na semana passada, o Ministério da Fazenda divulgou que, entre 1996 e 2000, as indústrias que usaram insumos importados elevaram a produtividade em 50%.

Incentivado pela bem-sucedida abertura para o exterior que os números acima demonstram, o Ministério da Fazenda do governo atual quer reduzir ainda mais a tarifa máxima de importação passando-a dos atuais 35% para 10,5% num prazo de dez anos. A idéia é provocar um novo choque de produtividade pela exposição ainda mais desassombrada à competição externa. A história recente do Brasil mostra que há mais ganhos do que riscos em uma medida dessa natureza. O cenário internacional parece muito adequado. O mundo cresce a taxas surpreendentes. A média de expansão em 2004 foi de 5,1%. Em 2005, deve ficar em 4,3%, um pouco abaixo, mas ainda assim expressiva. No front doméstico, a sobranceira atitude da economia perante a crise política também sugere que não há muito que temer de solavancos internos ou externos. "A solidez das instituições que dão sustentação à política econômica é mais vital do que a conjuntura. A crise política teria derrubado a economia se a inflação estivesse em alta, o crescimento errático e não houvesse controle de gastos do governo", diz o economista Fábio Giambiagi.

Em termos institucionais, a abertura para o exterior é uma garantia de aprimoramento constante tanto na esfera governamental quanto na das empresas privadas. Os escândalos contábeis da Enron e da MCI WorldCom levaram à aprovação em 2002 da lei americana proposta pelo senador Paul Sarbanes e pelo deputado Michael Oxley. A lei, conhecida como Sarbanes-Oxley, ou apenas SarBox e, mais recentemente, Sox, protege os investidores contra crimes contábeis perpetrados pelas corporações. A SarBox abriu a caixa-preta das empresas americanas com ações nas bolsas e agora começa a ter seu efeito depurador espalhado pelo mundo. Toda empresa estrangeira que queira vender papéis em Wall Street ou simplesmente captar recursos no mercado financeiro americano tem de provar que opera de acordo com as exigências daquela lei de nome esquisito mas de resultados práticos muito simples e positivos. O texto legal prevê multa de até 5 milhões de dólares e cadeia de até vinte anos para quem sair da linha e lesar investidores. Suas determinações visam principalmente a impedir que os executivos possam disfarçar seus eventuais crimes financeiros. Enquadrar-se nessa lei dá a qualquer empresa uma imagem mais confiável de boa governança corporativa. Estudo da consultoria McKinsey mostra que, na Indonésia, os investidores pagariam até 31% a mais por ações de empresas transparentes. No Brasil, gatariam 24% a mais. A enquete de VEJA com as cinqüenta maiores empresas privadas do país mostrou que metade delas já se mexeu para viver sob as exigências da lei SarBox. Qual seria o papel dos governos, nesse mundo, que parece manter estados e empresas andando na linha quase que de maneira mágica? O de simples "vigia noturno", como defeniam os liberais? Será que o governo só deve mesmo entrar em ação para proteger a propriedade privada quando as pessoas estão dormindo? Essa é uma discussão que já foi mais difícil. Por enquanto, basta nos contentarmos com o fato de que, ao que tudo indica, aventureiros e populistas encontrarão barreiras cada vez mais intransponíveis para chegar ao Palácio do Planalto.

Com reportagem de Chrystiane Silva,
Carina Nucci e Francisco Mendes

 

A crise é menor vista de fora

Os estrangeiros estão ainda mais otimistas que os brasileiros quanto à capacidade da economia de resistir à crise política. Ricardo Santiago, representante do Banco Interamericano de Desenvolvimento na Europa, acredita que no Brasil a dinâmica da economia adquiriu força muito semelhante à que tem nos países ricos. Diz ele: "A economia já é capaz no Brasil de moldar presidentes e ministros. Os aventureiros acabam entrando nos eixos". A economista francesa Christine Peltier, do Banco BNP Paribas, de Paris, monitora hora a hora o desempenho da economia brasileira. Suas análises têm sido invariavelmente favoráveis a investimentos no Brasil. Afirma Christine: "A perspectiva da continuidade da política econômica transmite confiança em quem investe a longo prazo no Brasil". Ricardo Amorim, diretor de pesquisa de investimento para América Latina do banco alemão WestLB em Nova York, também é responsável por produzir um relatório diário sobre o Brasil. Amorim diz que as boas notícias do mundo real sobrepujam em força os escândalos brasilienses. Diz ele: "A geração de empregos em expansão e o aumento da renda dos últimos meses, em conjunto com a queda da inflação, criarão condições para cortes de juros a partir de setembro ou no máximo em outubro".

Os europeus estão acostumados a assistir a crises geradas pela descoberta de financiamentos ilícitos de partidos políticos com enriquecimento de seus membros sem que elas afetem a economia. Em 1992, no auge do maior escândalo de corrupção do continente, conhecido como Mani Pulite – Mãos Limpas –, os italianos escutaram do ex-primeiro-ministro socialista Bettino Craxi, corrompido até o pescoço, uma linha de defesa similar à que os petistas vêm utilizando: ou seja, a corrupção é endêmica, histórica, e culpar o atual partido no poder por ela é injusto. Como se sabe, não houve fuga de capital estrangeiro aplicado na Itália. Os investidores nacionais e estrangeiros fizeram suas contas e chegaram à conclusão de que a Itália era maior do que seus governantes. Quem fugiu foi Craxi. Morreu no exílio na Tunísia. Se o exemplo pega, o charter dos petistas em fuga seria um espetáculo à parte.

Antonio Ribeiro, de Paris

 

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