Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 04, 2005

Gabeira vê em Lula "despreparo" de Severino

FOLHA DE S PAULO
Deputado diz que é preciso acabar com "elogio da ignorância" e argumenta que PT ruiu por ter se rendido à lógica da luta armada



JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O ocaso prematuro do governo Lula mergulhou o deputado federal Fernando Gabeira, 64, numa fase de revisão existencial. "Quando há um fracasso tão retumbante e você se vê como parte desse fracasso, a sua vida entra em questão. Por que tantos anos de sacrifício e de luta?"
Expoente da resistência contra a ditadura, Gabeira (PV-RJ) tem uma explicação singular para a crise. Acha que o PT ruiu porque se rendeu à lógica da luta armada. Transpôs para o governo a máxima guerrilheira segundo a qual os "fins justificam os meios".
O deputado tornou-se personagem da semana ao interpelar, na terça-feira, o presidente da Câmara. "Vossa excelência é um desastre para o Brasil", disse, dedo em riste, a um Severino Cavalcanti que, na véspera, defendera em entrevista à Folha punição branda para os integrantes da bancada do "mensalão".
Gabeira enxerga no presidente Lula traços do "despreparo" que vê em Severino. Insurge-se contra a exaltação que ambos fazem de suas origens humildes. "Faço a minha autocrítica. Blindamos o Lula com o argumento de que as pessoas que achavam que ele dizia coisas sem sentido eram preconceituosas. Temos que acabar com o elogio da ignorância."
Gabeira integrou o grupo que seqüestrou em 1969 o embaixador americano Charles Elbrick, para trocá-lo pela liberdade de um grupo de estudantes presos no ano anterior, entre eles José Dirceu. Hoje, declara-se favorável à cassação do mandato parlamentar de Dirceu, ex-ministro.
Repetiria o seqüestro para livrar Dirceu de uma nova e hipotética prisão? "Jamais participaria de um seqüestro novamente. Compreendi o erro contido nessa forma de luta. Além disso, o tipo de acusação a que ele era submetido naquela época é muito diferente das acusações que enfrenta hoje."
Gabeira converteu-se num esquerdista sem utopias. "Nesses momentos de crise existencial sinto que precisamos trabalhar com os pés na realidade", diz ele. "Não haverá mais sonho. Quero ajudar as pessoas que estão realizando tarefas que não foram cumpridas por conta da expectativa de uma revolução que resolveria tudo. Essa revolução não existe no horizonte." "No Brasil", completa, "o Muro de Berlim está caindo com atraso".
Leia abaixo a entrevista que Gabeira concedeu à Folha na tarde da última quinta-feira.
 

Folha -Conhecido pela afabilidade no trato, o sr. interpelou Severino Cavalcanti com rispidez incomum. A crise roubou-lhe a calma?
Fernando Gabeira -
Há limites para a calma. Com a entrevista do Severino, mostrou-se necessário interpelá-lo de maneira mais ríspida, para que ele entendesse que a crise não comporta contemporizações. Para o meio político, o tom pareceu elevado. Mas não recebi da população nenhum comentário nesse sentido. O cidadão comum e o político profissional percebem a crise de modo diferente.

Folha - Iniciada com a divisão do PT, a ascensão de Severino só foi garantida pelos votos que ele recebeu da chamada oposição responsável. Por que a insensatez prevaleceu sobre o bom senso?
Gabeira -
O PT não só rachou como optou por um candidato [Luiz Eduardo Greenhalgh] com poucas chances de vitória. E a oposição quis impor nova humilhação ao governo. Eu dizia que votar em Severino era votar contra o Parlamento. Fui apontado como preconceituoso. Diziam que Severino era humilde como o Lula.

Folha - Há na sua críticas um ataque subliminar à "glamourização" da falta de educação formal?
Gabeira -
Esse aspecto é decisivo no momento. Faço a minha autocrítica. Blindamos o Lula com o argumento de que as pessoas que achavam que ele dizia coisas sem sentido eram preconceituosas. Existe na sociedade brasileira, sobretudo na classe média, um sentimento de culpa em relação aos pobres. Daí a grande adesão à tese de que a classe operária teria um papel messiânico. Apesar de ter contribuído para a campanha do Lula e de me sentir responsável por ajudar a meter o Brasil nessa encrenca, acho que temos que superar essa fase de culpa diante dos pobres e dos incultos. Minha experiência pessoal é a de um homem que também não era rico. A diferença é que certas pessoas têm curiosidade e outras não têm. Se você é pobre e tem curiosidade, você estuda. Temos que acabar com o elogio da ignorância.

Folha - Houve perversões também sob o governo do intelectual FHC. Compraram-se votos pró-reeleição, saquearam-se repartições como a Sudam etc. O diploma universitário também não impediu que João Paulo Cunha, antecessor de Severino, recebesse dinheiro sujo do "valerioduto". O que infelicita a política nacional é a falta de estudo ou a falta de decência?
Gabeira -
Obviamente, só o fato de a pessoa ser instruída não resolve o problema. É preciso ter compromisso com o povo.

Folha - Em que medida a deficiência intelectual de Lula contribuiu para insuflar a crise?
Gabeira -
Lula ascendeu ao governo munido de idéias inadequadas à realidade. Constatada a inadequação do programa, era preciso curiosidade intelectual para promover o ajuste. Lula precisava reexaminar a sua visão de Estado. Criou muitos ministérios, empregou políticos que haviam perdido as eleições, estimulou a ocupação do aparato estatal pelos amigos. Confundiu Estado com partido.

Folha - Quando o sr. se engajou à campanha de Lula, não lhe ocorreu analisar o projeto de país que se escondia atrás do PT?
Gabeira -
Eu já tinha em relação ao ideário tradicional da esquerda uma visão crítica. Mas me deixei levar por uma preocupação intensa com a questão ecológica do programa de governo e não acompanhei as outras coisas. A meu favor, digo que não fui convidado para contribuir com outras questões.

Folha - Antes de se desligar do PT, em 2003, o sr. esteve no Planalto, para conversar com José Dirceu, então chefe da Casa Civil. Tomou um chá de cadeira de uma hora e meia. Abespinhado, foi embora antes de ser recebido. Hoje, Dirceu perambula de deputado em deputado, vendendo a tese de que é inocente. Se ele batesse agora à sua porta o sr. o receberia?
Gabeira -
Sim.

Folha - Com ou sem chá de cadeira?
Gabeira -
Sem chá de cadeira. Já recebi a defesa dele. No momento em que eu interpelava o Severino no plenário, na terça-feira, ele passou por mim. Eu disse: "Recebi a sua defesa, mas não posso falar contigo agora".

Folha - Quando puder falar, o que dirá a Dirceu?
Gabeira -
A defesa dele se baseia no fato de que, no instante em que os problemas ocorreram, ele era ministro. Não poderia, portanto, ser acusado de atentar contra o decoro parlamentar. Na minha visão, se o parlamentar comete crime grave deve perder o mandato, mesmo não estando no exercício do mandato.

Folha - Onze em cada dez deputados apostam que Dirceu será cassado. O sr. compartilha dessa unanimidade?
Gabeira -
Sim, compartilho dessa expectativa.

Folha - Vai votar a favor da perda do mandato do ex-ministro?
Gabeira -
Muito provavelmente. A menos que aconteça algo que altere a minha visão.

Folha - Se Dirceu fosse preso hoje o sr. seqüestraria um embaixador americano para libertá-lo?
Gabeira -
Não. Jamais participaria de um seqüestro novamente. Compreendi o erro contido nessa forma de luta. Além disso, o tipo de acusação a que ele era submetido naquela época é muito diferente das acusações que ele enfrenta hoje.

Folha - Sua rejeição à luta armada decorre do amadurecimento que vem com a idade?
Gabeira -
Fiz uma ampla reflexão. Vi que era necessário ampliar os meus horizontes. A idéia da luta armada pressupõe a construção de um exército popular. Constituído o exército libertador, você fica sem saber depois quem vai te libertar do exército.

Folha - À luz do que o PT fez no governo, o sr. não é assaltado pela sensação de que a opção pelas armas foi perda de tempo?
Gabeira -
As duas coisas têm uma conexão. A opção pelas armas implicava a admissão do conceito de que os fins justificavam os meios. Recorria-se a meios como a morte de soldados, ataques a bancos, sacrifício de companheiros. Quando se chega ao governo, todos os meios passam a ser justificados em nome de um fim maior, que passa pela perspectiva de se manter no poder para eliminar a exploração do homem pelo homem. A esquerda brasileira chegou à decadência mais lentamente, mas segue o mesmo padrão da esquerda mundial. A diferença é que, no Brasil, o Muro de Berlim está caindo com atraso.

Folha - Seu raciocínio combina com José Dirceu, mas não com Lula, que, longe de ser um socialista clássico, sempre foi um sindicalista pragmático.
Gabeira -
Ele é tão pragmático que percebeu que a esquerda tinha uma fantasia a respeito do papel do operário. E resolveu encarná-lo. Ele ainda não se deu conta de que não foi a classe operária que chegou ao poder. No script da esquerda, ele representa a classe operária. Mas o script é dos intelectuais, que fantasiam muito a respeito do operariado. Uma filósofa como a Marilena Chaui, quando ouve o Lula, diz: "O Lula, quando fala, tudo se esclarece, tudo se ilumina".

Folha - A intelectualidade de esquerda vive uma fase de perplexidade, não acha?
Gabeira -
Existem diferentes níveis de desembarque na realidade. Há pessoas que vão mais devagar, outras levam um tombo. Olho com certa tolerância para esse processo.

Folha - Em meio a um presente tão desalentador, não lhe bate uma sensação de vazio?
Gabeira -
Quando há um fracasso tão retumbante e você se vê como parte desse fracasso, a sua vida entra em questão. Por que tantos anos de sacrifício e de luta? Valeu a pena? A história é mais brutal do que os nossos sonhos. Nesses momentos de crise existencial sinto que precisamos trabalhar com os pés na realidade.

Folha - Valeu a pena?
Gabeira -
Pessoalmente, pude evoluir em relação ao que eu era. Mas em relação ao Brasil temos uma dívida enorme. Considerando os quase três anos de governo Lula, pelo qual fui co-responsável, é desalentador notar que não conseguimos equacionar nem o problema do saneamento básico.

Folha - O sr. já se referiu ao governo como um cadáver insepulto. Se está morto, não seria melhor remover o corpo do Planalto antes que o cheiro se torne insuportável.
Gabeira -
Sua pergunta embute a resposta. Só se pode remover o corpo depois que o cheiro se tornar insuportável. Isso ainda não ocorreu.

Folha - Olhando para a frente, tem-se a impressão de que até a luz no fim do túnel foi roubada. O que o sr. enxerga no futuro?
Gabeira -
Vários mitos caíram. A ausência de um mito messiânico da classe operária permite concluir que não temos salvadores, o que é um avanço. A decadência moral em que parte da esquerda se meteu mostra que ela não é o bem absoluto. Fica demonstrado também que a direita não é o mal absoluto. Abre-se espaço para novas conformações políticas.

Folha - Que parcerias o sr. vislumbra para depois do dilúvio?
Gabeira -
Estamos em pleno naufrágio. Há corpos boiando, pessoas se afogando, gente segurando na amurada e sobreviventes preparando o salto do navio. É preciso ver o que vai sobrar. Mas creio que há a possibilidade de uma coligação de centro-esquerda, capaz de negociar com a direita sem comprá-la.

Folha - O sr. pode dar nome aos bois?
Gabeira -
O PSDB e a esquerda sobrevivente do PT podem se associar no futuro. A partir dessa associação, podem reconhecer que há um processo de modernização, embora lento, no PFL.

Folha - O sr. diria que José Dirceu está entre os corpos que estão boiando?
Gabeira -
Considerando o momento, diria que sim.

Folha - E quanto ao presidente Lula?
Gabeira -
Ele estava agarrado à amurada. No momento, agarra-se no braço de Juscelino Kubitschek. Quando Juscelino desencarnar, não sei o que pode acontecer.

Folha - O sr. ainda alimenta a esperança de reconstruir o seu sonho pessoal?
Gabeira -
Não haverá mais sonho. Preciso botar o pé no chão. Quero ajudar as pessoas que estão realizando tarefas que não foram cumpridas por conta da expectativa de uma revolução que resolveria tudo. Essa revolução não existe no horizonte. Uma pessoa como eu deveria ser proibida de ter grandes sonhos. Percebo que, não só não realizamos tarefas básicas, como cometemos uma série de atrocidades em nome dos sonhos. Nós, da esquerda, formulamos a idéia de um novo mundo, de um novo homem. Hoje, penso que devemos aceitar as pessoas tais como elas são, tentando melhorá-las, mas sem essa perspectiva do novo homem. É preciso trabalhar com a realidade. Sem medos nem esperanças.

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