Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 04, 2005

FERREIRA GULLAR Ah, se não fosse a realidade

FOLHA DE S PAULO
Alguns petistas -membros do PT ou simpatizantes, a exemplo do próprio Lula- tentam induzir a opinião pública a acreditar que a crise que assola o governo é fruto de uma conspiração de direita. Essa era uma das intenções de Lula no discurso em que aludiu a Getúlio Vargas, João Goulart e Juscelino Kubitschek como vítimas de conspirações semelhantes. Cumpre dizer, a bem da verdade, que nem Vargas nem Jango nem Juscelino fizeram governos de esquerda e, portanto, não poderiam ter sido vitimados por uma conspiração de direita, como quis induzir Lula. Vargas foi vitimado pelo ódio udenista, originado em seu governo autoritário que durou de 1937 a 1945. Jango, herdeiro de Vargas, teve também esse ódio udenista contra si, agravado pela histeria anticomunista da Guerra Fria. Jango, como se sabe, nunca foi de esquerda. Quanto a Juscelino ter feito um governo esquerdista, é tese tão fora de propósito que me nego a considerá-la.
Sei que é chover no molhado perguntar se Lula faz um governo de esquerda, mas, para eliminar qualquer dúvida, é melhor ver esta questão de perto. Lula deixou claro o rumo que imprimiria ao governo no momento em que compôs o ministério. Na Fazenda, Palocci, para dar continuidade à política econômica "neoliberal" do governo Fernando Henrique; na Indústria e Comércio e na Agricultura, dois empresários de comprovada eficiência em seus respectivos ramos de atividades. Nada mais bem comportado. Mas vamos aos outros ministérios, os da área social, que foram entregues a "companheiros". Que programas de esquerda se implementaram nesses ministérios? Será o Fome Zero um programa revolucionário, que ameaça a classe dominante? Pelo contrário, trata-se, como se sabe, de um programa assistencialista, que continua e amplia o que já existia antes. E o Ministério das Cidades, por acaso implantou-se nele um projeto revolucionário de reforma urbana? E o que foi realizado no plano da reforma agrária, terá sido tão radical a ponto de tirar o sono às classes conservadoras? Ao que se sabe, nem mesmo as promessas de campanha eleitoral ao MST foram cumpridas, razão por que as invasões continuaram até as vésperas da crise e só pararam porque Stedile não deseja agravar ainda mais a situação periclitante do companheiro Lula. Como resultado de tudo isso, os pobres estão quietos, os exportadores faturam alto e os banqueiros obtêm os maiores lucros de toda a história do capitalismo brasileiro. Em face de semelhante quadro, se algum conspirador de direita decidiu investir contra Lula, deve estar a esta hora internado numa clínica psiquiátrica.
O governo Lula conta, portanto, com o apoio das classes produtoras, dos banqueiros e dos partidos conservadores, à exceção do PFL. Hoje, as críticas mais duras à sua atuação vêm da esquerda: do PSOL e da ala inconformada do PT. Logo, essa história de conspiração de direita não passa de uma balela que visa a encobrir as verdadeiras causas da crise: o caixa dois, o "mensalão", a farra da grana a circular em malas e maletas, cuecas e carros-fortes.
O PT não tem e nunca teve um programa de governo. Organização meramente ideológica, seu objetivo era tomar o poder e ocupar a máquina do Estado para então mudar a sociedade brasileira. Mas mudar em que direção e como? Não importava. Em sua visão esquemática, pensava em torná-la "justa" e, quem sabe, socialista. Que medidas seriam tomadas, que projeto seria implantado, que recursos seriam investidos, de onde viriam os recursos? Não tinha respostas claras para tais questões, que importavam pouco. Primeiro tomaria o poder e, então, com "vontade política", resolveria todos os problemas.
Talvez pensassem assim ao fundar o partido e nos anos iniciais de militância, mas, logo que ocuparam as primeira prefeituras e conheceram o gosto do poder, renderam-se aos acordos espúrios e às negociatas. Acresce que, entre a fundação do PT e muito antes de sua chegada ao Planalto, deu-se a derrocada do sistema socialista, o que veio tornar ainda mais difícil a definição de um rumo para os partidos de esquerda. Como a implantação do socialismo tornou-se inalcançável, o oportunismo ocupou o lugar da utopia. A partir daí, chegar à Presidência da República, para o PT, era mera ambição de poder pelo poder, e a corrupção substituiu a ideologia Isso explica porque os dirigentes petistas não enriqueceram, apesar da vultosa grana que manipulavam. O objetivo era fortalecer o partido e corromper os outros.
Só não contavam com os tropeços da realidade. Agora, como aquele paciente da psicóloga Karen Horney, devem lamentar desapontados: "Ah, se não fosse a realidade!"

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