FOLHA DE S PAULO
O ponto ótimo da calda ao escrever a história do presente é o instante entre a fervura e a cristalização, o líquido borbulhante e a crosta congelada, a confusão desnorteadora do que não acabou de acontecer e a irrelevância indistinta dos blocos de gelo armazenados na memória do passado. "A real história do Real", de Maria Clara do Prado, não só captura esse instantâneo mas o concatena e amarra na teia do "antes" e "depois", torna-o inteligível e, graças às entrevistas com os protagonistas, oferece as configurações possíveis do caleidoscópio explicativo.
O estilo é límpido, direto. Fiel ao espírito da campanha do lançamento do Real, de que foi ativa participante, não se perde no cipoal do "economês" e narra as mais intrincadas discussões técnicas com tal clareza e simplicidade que o livro se lê como romance de suspense, sem faltar os desenlaces dramáticos e as vítimas fatais.
O subtítulo "Uma radiografia da moeda que mudou o Brasil" é duplamente veraz. Corresponde, de fato, ao que a obra é, entre outras coisas, pois é também história contemporânea e reportagem de qualidade, que deveria ser adotada para o estudo da complexidade do processo decisório nos cursos de comunicação, economia e história.
Mas a segunda parte da afirmação também é verdadeira. Argumentar sobre o ponto seria ocioso em momento em que, 11 anos após a introdução do Real, vive-se o paradoxo de um governo do PT, cujo maior traço redentor é a defesa inflexível da estabilidade de moeda que combateu tenazmente. A ponto de, na véspera do lançamento, enviarem ao Ministério da Fazenda delegação da CUT para anunciar que sairiam à rua com "slogan" até de um certo humor: "Parece real, mas é um pesadelo". Disse-lhes que iam quebrar a cara, pois, longe de ser ideal pequeno-burguês, a estabilidade -da moeda, do emprego, da saúde e do amor- é a aspiração mais profunda, ao lado do afeto, de todo ser humano. Custou ao PT, à esquerda brasileira e latino-americana entender que isso é ainda mais verdade para os fracos e vulneráveis, sempre à mercê da precariedade e vítimas principais da hiperinflação de quase 2% ao dia que ameaçava destruir então a sociedade.
Foi o povo brasileiro que mudou o país e mudou o PT, e não o contrário. Este último não fez senão acompanhar a mudança. A maioria, quero crer, por convicção. Outros, por cálculo, por oportunismo tático. Talvez se encontre aí a chave das contradições atuais.
Uma lição para o presente é o relato minucioso que faz Maria Clara das dificuldades que enfrentamos para realizar a divulgação dos fatos básicos sobre o Real. Não se tratava de propaganda para vender sabonete, mas de informar às pessoas como seriam as cédulas e as moedas novas, a importância das moedinhas, a taxa de conversão, as datas etc. Pois bem, apesar do óbvio interesse público dessa tarefa, não tínhamos dinheiro -embora estivéssemos no Ministério da Fazenda e no BC. Quando localizávamos alguns recursos -os do Funcheque, por exemplo-, tropeçávamos nas regras e prazos das licitações, incompatíveis com a proximidade da data de lançamento.
Fomos, por isso, forçados a desistir das agências de publicidade e tivemos de recorrer, não por escolha mas por necessidade, aos pronunciamentos seguidos nas emissoras de TV, cuja contribuição pró-ativa e inteligente revelou-se fundamental. Quem sabe tenha sido melhor desse modo. Não deixa, porém, de causar perplexidade, à luz dos obstáculos legais que nos derrotaram, ver a facilidade com que hoje se desperdiçam rios de dinheiro público, não para informação útil mas para a mais deslavada propaganda pessoal de governantes em todos os níveis. O que foi que mudou, as leis, as instituições ou o rigor com que o presidente Itamar Franco as aplicava? A questão se encontra no âmago da corrupção que engole o governo, pois é notório que as campanhas de propaganda e as agências foram, ao mesmo tempo, as condições que tornaram possíveis os delitos e os instrumentos para sua execução. Por que, então, não concentrar nesse tema a investigação e o remédio?
Entrego essas indagações aos entendidos. Contento-me em fechar o livro com a sensação de que a luta pelo Real foi para alguns de nós uma guerra na qual deixamos uma parte importante de nossas próprias vidas, da qual saímos talvez malferidos e mutilados. Foi, não obstante, nossa "finest hour" e podemos por isso sentir-nos "em paz com a nossa guerra".
Entrevista:O Estado inteligente
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